Por Adriane Garcia
Apesar
do erotismo ter estado sempre presente na literatura brasileira, foi a partir do
final do século XIX que ele se expandiu, coincidindo com um maior exercício da
tardia imprensa no Brasil e suas tipografias. O livro, artigo de luxo restrito
a uma parcela pequena e privilegiada da população, era, em geral, importado.
Com a maior circulação do livro na capital do Império, a autoria nacional
cresceu no mercado livreiro.
Os
livros tidos como pornográficos já faziam seus adeptos entre os leitores no país;
vindos da Europa, tratavam dos temas devassos, da luxúria, da depravação, dos bordéis,
das orgias e dos personagens sobre os quais a moral fazia calar: prostitutas,
homossexuais, pervertidos, libertinos monásticos e políticos. Em uma sociedade
marcada pelo conservadorismo e pelo controle do corpo através da Igreja e do
Estado, alguns escritores brasileiros, para desenvolver a temática erótica,
optaram por assinar com pseudônimos. Além dessa estratégia, os escritores do século
XIX que se aventuraram a falar do sexo, muitas vezes o fizeram utilizando-se da
alusão.
Em
O corpo descoberto, seleção organizada por Eliane Robert Moraes, é possível
encontrar um grande acervo do que foi essa literatura. A seleção delimita
setenta anos de produção do conto erótico brasileiro, de 1852 a 1922,
finalizando exatamente com a chegada do Modernismo. Outra delimitação é que
somente foram usados textos de domínio público. São 23 autores, notando-se
entre eles apenas uma escritora: a carioca Júlia Lopes de Almeida. Em um país
com entraves que iam da deficiente
alfabetização das mulheres ao machismo nas relações sociais, é explicável que a
autoria feminina ficasse totalmente prejudicada. Não obstante, o conto da
autora, O caso de Ruth, é um dos melhores da seleção. O leitor poderá observar
a mudança de tratamento no conflito da personagem feminina quando escrito por
Júlia. Sua personagem esconde o segredo da violência sexual e diferentemente
de, por exemplo, a narrativa de Olavo Bilac, em que o narrador acaba
justificando essa violência com a “premiação” de uma gravidez, Júlia nos conta
de uma personagem que não escapa do suicídio.
Contextualizados
dentro do Romantismo, passando pelo Realismo e Naturalismo, O corpo descoberto
traz nomes como Machado de Assis, Raul Pompéia, Cruz e Souza, Aluísio de
Azevedo, João do Rio e Lima Barreto, dentre outros, chegando em Mário de
Andrade. A organização do livro é temática, abrangendo histórias que envolvem
objetos, viúvas, feitiços, mulheres da vida,
descoberta do corpo, assombrações e até a sensualidade dos tísicos (mais
especificamente das tísicas). A mulher é o personagem em comum e nisso também o
livro se torna interessantíssimo. Como é para o leitor, a leitora de agora, ler
essa visão de mulher essencialmente idealizada ou demonizada na literatura do
século XIX? Pois é fato que o leitor, a leitora lê com os olhos de agora.
Usando
a alusão para praticar uma literatura erótica, os autores em O corpo descoberto
mostram os “modos de narrar”, de dizer sem dizer e, ao mesmo tempo, trabalham
com a sugestão. O braço nu da mulher sugere o corpo, o vaso de cerâmica sugere
a vagina, a comparação com o cisne sugere a mulher elegante, feita para a
apresentação na sala, ao mesmo tempo que a comparação com a cabrita sugere a
mulher sensual e pecaminosa, feita para a cama. No deslanchar das histórias,
quase sempre, o homem é o ser desencaminhado pelas mulheres, assolado e
desolado pelas paixões. A mulher bonita é quase invariavelmente branca, loira,
no máximo morena, o que quer dizer ter cabelos negros.
Machado
de Assis traz uma boa surpresa: Pílades e Orestes, um conto homoerótico sobre
dois amigos inseparáveis e Mário de Andrade fecha o livro com O besouro e a
rosa. Neste conto, um besouro caminha sobre o corpo de Rosa e se embola nos
seus pelos pubianos. É a linha que separa a inocência do desejo consciente do
sexo. A organizadora foi sagaz ao encerrar a seleção com um escritor que também
representa uma linha divisória.
Um
livro especial, feito para leitores e leitoras que para além da ficção, prezam
os registros que a literatura efetua e que constituem, também, a nossa história
e a história dos nossos modos de narrar.
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O corpo descoberto
Contos Eróticos Brasileiros (1852-1922)
Seleção de Eliane Robert Morais (Org.)
Cepe Editora
2018