“rezar não
adianta
é difícil o mundo
nos aceitar sem
algum suborno”
“a estrada é
árdua
a ampulheta é
célere
a lamparina é
parca”
Por Adriane Garcia
A palavra
“escafandro” já evoca uma imagem poderosa: um escafandro tanto
lembra perigo quanto proteção. A sonoridade é tanto exótica
quanto parece um verbo no gerúndio. Um escafandrista pode nos
remeter ao futuro descobrindo o passado, e também ao próprio
passado, desenhado neste objeto lúdico de exploração aquática.
Obviamente, poetas diante da palavra “escafandro” não a
deixariam escapar por nada, ainda mais se ela lhes fosse soprada em
um sonho.
Sonhada por Wilson
Torres Nanini, juntamente com a palavra “redemunho”, que nos
coloca em movimento imediato, ele a transformou em um livro:
Escafandro (ed. Patuá, 2015).
Escafandro é
uma coletânea belíssima, cujos poemas são intitulados com iniciais
de nomes de pessoas. O livro traz à tona retratos de família, conta
as memórias de uma comunidade, pelo olhar do poeta: uma comunidade
mineira, rural e demasiadamente humana. Nos poemas de Nanini, a
memória, impregnada de afeto, mistura a vida das personagens com o
sentimento do autor sobre elas. O resultado é um mergulho profundo
nas questões existenciais, envolvendo o sentido da vida, o tempo, a
irreversibilidade, as ilusões desfeitas, as fatalidades a que
estamos expostos, a experiência humana sempre forjada no erro, a
morte e, principalmente, a precariedade. Diante do difícil exercício
de viver, Nanini evoca, reincidentemente, a necessidade dos
anestésicos: o amor, a distração dos afazeres, a religiosidade, os
buquês de flores de ipês salvadores, na luta constante, exterior e
interior entre o bem e o mal.
É preciso coragem
para vestir um escafandro. Quem o veste, sabe que visitará os
mortos, que entrará no reino amniótico das águas, que recolherá
os rastros de uma raça extinta. A memória, sabe Nanini, é um
relato ajudado pela imaginação, quando precisa explicar para si
mesma algum fóssil que encontra aqui e ali. Pelo silêncio, o homem
submerge, e pela palavra emerge (borboleta-de-rapina). Por ela, o
escafandrista nos conta, não sem dor, que esteve em um mundo cujo
redemunho poderia enlouquecer qualquer um. É quando nos damos conta
de que, enquanto líamos o livro, o mergulho também era feito dentro
de nós.
padre O. da
serenidade
e saber ir-se a deus
a velhice é um
caminho
o câncer é um
atalho –
quando os desejos já
são múmias
de que valem as
hóstias sem açúcar
aos dentes já
ausentes?
a igreja
dói devagar –
apesar
de em seu meio:
negações ruminando
galos
a cisterna de
águas-vivas bentas
apaziguando
o excesso de
miragens
as muitas madalenas
que me juram
excrementos
mesmo após eu as
ter
livrado
do apedrejamento
dona L. do asilo
ela: cerne de cicuta
velhinha vestida de
alarido
ciranda presépio e
disparates
rumina rindo-se uma
cantilena
hieroglífica
em nós dói ela
ninar perene boneca-
-de-pano (simulacro
de seu
bebê fenecido de
infância)
as fotografias de
seus entes
(coágulos
fantasmas) já sem nome
e uma solidão que
nunca foi mansa
dona E. N. das
pamonhas
após as tachadas
interpreta deus
a felicidade é:
um domingo-à-tarde
(os cães
satisfeitos com restos de comida e de afeto
os filhos orbitando
em torno dela
aureolares)
segunda-feira entre
novelas
iniciar a novena
pois “um peito em
brasa só se apazigua
com cuspe divino”
– “deus me é o
leito de uma sede-sem-margens” –
mas o coração é
tão
desfiladeiro
“aquilo pelo qual
mais morremos
mais nos mata”
tio N. dos brejos
inútil cálice com
água
em uma casa submersa
demoro a minha sede
depurando os brejos
demoro a minha
infância
decantando os
assombros
e quando me chega o
apaziguamento
eis: uma água
– uma água! –
póstuma ao incêndio
sargento M. dos
provérbios
benzidas as roseiras
obtém-se a asfixia
apta para
espingardas
cada um sabe com que
cus
restituirá ao mundo
os ossos que
engolira
com bocas incautas
difícil é resgatar
as borboletas
voluntariamente
encravadas
na ferrugem do
autonaufrágio
as únicas vacas que
não
vão para os brejos
são as aladas
qualquer pão volta
a ser pedra
se demoramos a
colher
o milagre oferto
***
Escafandro
Wilson Torres Nanini
Poesia
Ed. Patuá
2015
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