quinta-feira, 15 de março de 2018

Escafandro – de Wilson Torres Nanini



rezar não adianta
é difícil o mundo
nos aceitar sem algum suborno”


a estrada é árdua
a ampulheta é célere
a lamparina é parca”





Por Adriane Garcia


A palavra “escafandro” já evoca uma imagem poderosa: um escafandro tanto lembra perigo quanto proteção. A sonoridade é tanto exótica quanto parece um verbo no gerúndio. Um escafandrista pode nos remeter ao futuro descobrindo o passado, e também ao próprio passado, desenhado neste objeto lúdico de exploração aquática. Obviamente, poetas diante da palavra “escafandro” não a deixariam escapar por nada, ainda mais se ela lhes fosse soprada em um sonho.

Sonhada por Wilson Torres Nanini, juntamente com a palavra “redemunho”, que nos coloca em movimento imediato, ele a transformou em um livro: Escafandro (ed. Patuá, 2015).

Escafandro é uma coletânea belíssima, cujos poemas são intitulados com iniciais de nomes de pessoas. O livro traz à tona retratos de família, conta as memórias de uma comunidade, pelo olhar do poeta: uma comunidade mineira, rural e demasiadamente humana. Nos poemas de Nanini, a memória, impregnada de afeto, mistura a vida das personagens com o sentimento do autor sobre elas. O resultado é um mergulho profundo nas questões existenciais, envolvendo o sentido da vida, o tempo, a irreversibilidade, as ilusões desfeitas, as fatalidades a que estamos expostos, a experiência humana sempre forjada no erro, a morte e, principalmente, a precariedade. Diante do difícil exercício de viver, Nanini evoca, reincidentemente, a necessidade dos anestésicos: o amor, a distração dos afazeres, a religiosidade, os buquês de flores de ipês salvadores, na luta constante, exterior e interior entre o bem e o mal.

É preciso coragem para vestir um escafandro. Quem o veste, sabe que visitará os mortos, que entrará no reino amniótico das águas, que recolherá os rastros de uma raça extinta. A memória, sabe Nanini, é um relato ajudado pela imaginação, quando precisa explicar para si mesma algum fóssil que encontra aqui e ali. Pelo silêncio, o homem submerge, e pela palavra emerge (borboleta-de-rapina). Por ela, o escafandrista nos conta, não sem dor, que esteve em um mundo cujo redemunho poderia enlouquecer qualquer um. É quando nos damos conta de que, enquanto líamos o livro, o mergulho também era feito dentro de nós.


padre O. da serenidade

e saber ir-se a deus
a velhice é um caminho
o câncer é um atalho –
quando os desejos já são múmias
de que valem as hóstias sem açúcar
aos dentes já ausentes?
a igreja
dói devagar – apesar
de em seu meio:
negações ruminando galos
a cisterna de águas-vivas bentas
apaziguando
o excesso de miragens
as muitas madalenas
que me juram excrementos
mesmo após eu as ter
livrado
do apedrejamento


dona L. do asilo

ela: cerne de cicuta
velhinha vestida de alarido
ciranda presépio e disparates
rumina rindo-se uma
cantilena hieroglífica

em nós dói ela
ninar perene boneca-
-de-pano (simulacro de seu
bebê fenecido de infância)

as fotografias de seus entes
(coágulos fantasmas) já sem nome

e uma solidão que
nunca foi mansa


dona E. N. das pamonhas

após as tachadas
interpreta deus
a felicidade é:
um domingo-à-tarde
(os cães satisfeitos com restos de comida e de afeto
os filhos orbitando em torno dela
aureolares)
segunda-feira entre novelas
iniciar a novena
pois “um peito em brasa só se apazigua
com cuspe divino”
– “deus me é o leito de uma sede-sem-margens” –
mas o coração é tão
desfiladeiro
aquilo pelo qual
mais morremos
mais nos mata”


tio N. dos brejos

inútil cálice com água
em uma casa submersa
demoro a minha sede
depurando os brejos
demoro a minha infância
decantando os assombros
e quando me chega o
apaziguamento
eis: uma água
uma água! –
póstuma ao incêndio


sargento M. dos provérbios

benzidas as roseiras
obtém-se a asfixia
apta para espingardas

cada um sabe com que cus
restituirá ao mundo
os ossos que engolira
com bocas incautas

difícil é resgatar as borboletas
voluntariamente encravadas
na ferrugem do autonaufrágio

as únicas vacas que não
vão para os brejos
são as aladas

qualquer pão volta a ser pedra
se demoramos a colher
o milagre oferto

***
Escafandro
Wilson Torres Nanini
Poesia
Ed. Patuá
2015


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