Por Adriane
Garcia
Os
direitos são criações humanas. Assim como existem, podem deixar de existir.
Basta, para isso, que a conformação da sociedade mude, que não se vigie a
existência ou a vigência de um direito, que se façam novos (ou velhos) arranjos
de poder. Os direitos das minorias são conseguidos a duras penas, depois de
lutas cumulativas que levam décadas, por vezes séculos e a permanência desses
direitos (porque nunca existem pela benesse dos poderosos), vive sob tensão,
sob o perigo dos ataques.
É no
cenário permanente de ataque aos direitos das mulheres, que hoje enfrentam, no
Brasil, o aumento do número de agressões e feminicídios, tendo à frente do país
um homem que disse a uma parlamentar “só não te estupro porque você não
merece”, que Maria Valéria Rezende nos dá a conhecer o seu Carta à
rainha louca.
Para além
de sua importância política, como literatura que reflete o seu tempo, mesmo
quando pesca nas águas do passado, Carta à rainha louca é um livro que
permite a fruição prazerosa da leitura, aliando vivacidade da história narrada
com construção de linguagem, ironia e humor.
A
narrativa se passa entre 1789 e 1792, a partir de uma carta que Isabel Maria
das Virgens escreve à rainha de Portugal, Maria I, a Rainha Louca, que foi
educada para o canto, a pintura e a adoração a Deus, e não para administrar um
reino falido e povoado de ideias iluministas. Isabel, a protagonista, está
presa, há muitos anos, em um convento de recolhidas, em Olinda, sem julgamento,
nas eternas prisões provisórias de que o Brasil insiste em fazer muito uso,
quando nas garras da lei caem as pretas, pretos e pobres.
Isabel,
porém, é branca. Órfã de mãe muito cedo, foi cuidada na senzala pelo fiel amigo
de seu pai, o africano Gregório. Mais tarde, dama de companhia, Isabel se
percebe na classe de mulheres que, na época colonial, não serviam para nada:
não tinham dote para um possível casamento nem eram empregadas na lavoura. Com a perdição e tragédia de sua senhora,
ludibriada por um sedutor inescrupuloso e narcisista, ela se vê com a vida
completamente transformada.
Nessa
trajetória, Isabel conquista seu maior e talvez único tesouro: aprender a ler e
a escrever. É pela leitura e pela escrita que Isabel busca a salvação diária.
Nesse sentido, Carta à rainha louca é também uma grande e comovente
homenagem à escrita e à literatura, principalmente à literatura escrita por
mulheres. Aprender a ler torna Isabel Maria das Virgens mais instrumentalizada
para lutar pela vida e pela liberdade. O saber como uma arma para a vida
prática:
“Tantas
e tantas cousas que se havia por saber e tão úteis e tão possíveis de se vender
aos que nada sabem e todos os dias lutam contra o caos que advém das cousas
materiais se as deixamos sem vigilância – saberes que, por se referirem a
cousas comezinhas, não causarão espanto ao ver-se que os possua uma simples
mulher. Saberes para mim tão preciosos continha que eu já cismava em sair logo
dali para o verdadeiro vasto mundo e em como todo aquele conhecimento me
serviria para ganhar tostões e comprar liberdade.”
Certamente,
uma mulher que lê, que escreve e que ousa, demonstrando coragem e inteligência,
rompendo padrões é tida como louca. É assim, de louca para louca, que Isabel
busca a empatia da rainha; Isabel busca sororidade. Em sua carta, denuncia os abusos de toda
sorte que acontecem com as mulheres e os desvalidos na colônia, os abusos dos
poderosos e os abusos da Igreja, intrinsecamente ligados na época colonial. Sua
carta é sua petição de defesa, mas é também a petição de defesa de todos que
como ela sofrem. Isabel se sente assemelhada tanto aos escravizados quanto a
uma mulher que, ainda que rainha, era proibida de ser qualquer coisa que não
aquilo que lhe determinaram. Tanto o patriarcado quanto o escravagismo eram
males que deviam ser combatidos.
Carta à
rainha louca, escrito com uma mescla do vocabulário
setecentista e nossa linguagem contemporânea, delicia a leitora, o leitor; ao
mesmo tempo em que dá voz a uma personagem que grita pela liberdade, pela
igualdade de gênero, pelo direito da mulher ao seu próprio corpo, pela
solidariedade entre os fracos, pela justiça social. Uma personagem que, não
tendo todo papel disponível para escrever, precisa poupá-lo e , por isso,
conhecemos seu pensamento livre, a parte rasurada em que ela percebe que seria
censurada.
Em um
mundo onde a mulher não pode sair do lugar estreitíssimo que lhe foi delimitado
pelos homens, Isabel será capaz de grandes ousadias. Ousadias imperdoáveis, mas
das quais, sabemos, ela não se arrepende.
“Percebo,
Senhora, que, embora outra desgraça possa me acontecer a qualquer momento e
quiçá me veja outra vez sem meios para escrever-Vos, continuo a errar por
tantos assuntos sem nenhuma utilidade – a não ser a de dar-me a mim o gozo de
escrever palavras – em lugar de dizer-Vos aquilo que é de grande urgência, pois
que se o souberdes logo Vos movereis para tirar-me deste inferno. Com os suplícios
sobre mim impostos, porém, como já Vos relatei, rodavam minhas ideias como
moinhos ao vento e por isso enchi páginas e mais páginas com minha pobre escrita,
sem sequer dizer-Vos quem de fato sou e como e por que vim parar a esta
masmorra.
Devo
confessar-Vos, Majestade, que muitas vezes duvido de quem sou, duvido de minhas
lembranças, já não sei se são verdade ou alucinações, e temo que tudo o que
tenho imaginado como se meu passado fosse, até mesmo em parte belo em minha
recordação como por vezes me parece, não seja senão o meu desejo de que assim
tivesse sido. Prossigo, no entanto, minha Senhora porque isto de não se
saber ao certo quem é cada pessoa, como vejo por toda parte aqui nesta terra do
Brasil, há de ser cousa comum também nas galerias de Vossos paços em Portugal e
em todos os Vossos reinos como aprendi dos livros proibidos que li e dos infortúnios
que me fez passar Diogo de Távora. Por certo que também ali se cruzam e trocam vênias
as pessoas consideradas de qualidade, sem nenhuma prova de que o são, tanta é a
hipocrisia, o adultério, a mentira, a traição, a lisonja, o fingimento, a
aleivosia, a devassidão, o suborno e a corrupção que por eles campeiam
sinto e sei que a única cousa que me pode manter sã a mente, de sorte que eu
não naufrague para sempre no mar encapelado dos meus delírios, é o esforço de ordenar
as palavras em meu pensamento e no papel, não importando para nada se são
verdadeiras – daquela verdade que querem os inquisidores e os juízes – ou se
são apenas a verdade do meu desejo e do meu sonho, da liberdade de pensar, que
outros consideram insanidade, mas que teima em medrar no mais recôndito de
qualquer mulher até mesmo em Vós que, sendo rainha, por natureza nada mais
sois que uma fêmea faminta de amor e de horizontes, como todas nós outras, porque
assim creio estarem feitos o Vosso corpo e o Vosso coração como os nossos, e
deles emanarem os mesmos humores, a não ser que Vos hajam mutilado e oprimido
desde o Vosso nascimento para torcer-Vos a natureza e fazer de uma simples
mulher uma princesa perfeita, o que não creio, pois se assim fosse haveríeis de
enlouquecer, Vós também, sendo por certo muito mais de perto vigiada do que nós
que nada valemos.
Por
serdes Vós quem sois, sei bem que não tendes tempo a perder com essas quimeras de
uma qualquer como sou eu. Apenas para rezar a Deus e aos Santos, reinar e fazer
a justiça é que o tendes. É, pois, mister que eu me defenda de mais desvarios e
agora me esforce para esclarecer-Vos, ordenadamente, sobre quem eu penso que sou
e que direito e necessidade tenho de recorrer à Vossa Piedade.” (p. 51)
***
Carta à
rainha louca
Maria
Valéria Rezende
Romance
Alfaguara
2019
Um convite à leitura, sua resenha está perfeita. Beijos
ResponderExcluirObrigada, de coração,querida Adriane, pela leitura e a resenha tao generosas!
ResponderExcluirÓtima resenha. Isabel das Santas Virgens, personagem maravilhosa. Amo !!! Lendo pela terceira vez....
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