domingo, 29 de dezembro de 2019

Tempo em fúria, de Dalila Teles Veras




Por Adriane Garcia



elemento em fúria

indignar-me
riscar o fósforo
centelha restauradora
em campos de figos
e fel

É com esse poema, acima, que o livro tempo em fúria, de Dalila Teles Veras, se inicia. Na contracapa, outro poema, Motes, diz a que veio:


a rotina exige
a indignação ordena
o afeto impele
a criação impõe

motores


A publicação de tempo em fúria é uma resposta que a poeta dá ao seu tempo – este específico: 2018/2019. Resposta urgente de uma poesia colada na realidade, no acontecimento, no cotidiano, na vida humana enquanto fenômeno coletivo, social e político.

Com poemas construídos a partir de uma linguagem objetiva – uma característica da poesia de Dalila Teles Veras – raro o uso das palavras ditas “poéticas” – tempo em fúria faz ponte direta com o leitor, sem que ele precise ser um “iniciado”, quiçá “iluminado”, em poesia. Nesse sentido, a forma também diz do conteúdo: Dalila é uma militante da democracia. E a palavra não deve criar percalços, deve muito mais comunicar-se com o maior número de pessoas, a fim de que a poesia também seja democratizada. O desafio, vencido pela poeta, é justamente oferecer uma poesia simples e complexa, trabalhada para ser acessível, como quem bem sabe a lição de Graciliano Ramos: “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.

Os poemas de tempo em fúria relacionam-se diretamente com a eleição presidencial no Brasil de 2018 e o primeiro ano de governo, 2019. A eleição foi marcada pelo uso massivo das fake news, investigadas e denunciadas ao Tribunal Superior Eleitoral; pela participação do atual Ministro da Justiça, à época juiz, na prisão do principal adversário do presidente eleito, agindo de modo parcial e fora dos ritos legais; pela ação da mídia, construindo, ao longo de mais de uma década, toda uma narrativa de corrupção contra o Partido dos Trabalhadores. Como se não bastasse, o problema do pouco tempo de propaganda política do candidato de extrema-direita na TV ficou resolvido quando levou uma misteriosa facada no abdômen e tomou conta dos noticiários, tirando-o providencialmente dos debates a que já não ia. Esses fatores combinados, mais a crise econômica (em muito fabricada pelos opositores ao governo de Dilma Rousseff), além do aumento da expectativa de crescimento individual gerada pelo crescimento econômico que vinha constante e em determinado momento decrescia, produziram uma crise política que prejudicou até mesmo partidos de direita e alçou  Jair Messias Bolsonaro ao poder. 

Sim, a poesia pode falar de tudo. Dalila fala desse monstro, o fascismo, que saiu do armário de muitas famílias brasileiras, principalmente da tal orgulhosa “gente de bem”, em cujos preconceitos o discurso de ódio do capitão expulso do Exército caiu como uma luva. Fala da falta de competência desse governo, dos seus crimes ambientais, da banalidade da sua violência, da sua omissão, da sua corrupção, da parcialidade de seu servo juiz, dos seus ministros fundamentalistas religiosos cristãos e ensandecidos. Dalila também fala da resistência, da esperança de que a História os coloque em seus devidos lugares: a obscura toca dos ratos.

A edição ainda oferece uma segunda parte chamada “uma estação no purgatório”. Nesse conjunto, cuja epígrafe não poderia deixar de ser de Arthur Rimbaud, a poeta nos conta da condição de acompanhantes e pacientes nos hospitais, esses ambientes antissépticos, alienígenas, cheios de aparelhos e barulhos estranhos, procedimentos invasivos e tantas vezes autoritários, onde estamos completamente vulneráveis com nossos corpos.

Um livro necessário, de uma poeta que domina o verso e registra sua posição: “ditadura, nunca mais... tortura, nunca mais... generais, nunca mais, nunca mais...
para que fique justificada a publicação dos poemas deste tempo em fúria, como um grito, para além dos meus umbrais.”

recusa

há qualquer coisa
de interlúdio
nesta ópera
trágica/bufa
sem libreto
só prelúdio
para a qual
não fui convidada

não ouço
não quero
não vou

 ***

tempo em fúria
Dalila Teles Veras
Poesia
Alpharrabio Edições
2019


segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Um exu em Nova York, de Cidinha da Silva




Por Adriane Garcia


Alguns livros, para além de muito bons, são importantes. É o caso de Um exu em Nova York, livro de contos de Cidinha da Silva. O livro é composto por 19 contos. Já na abertura, em I have shoes for you, Cidinha nos dá um dos elementos que irão perpassar muitas das histórias: a leitura dos sinais, o exercício da intuição, a ligação espiritual de todas as coisas.

Esse enfoque, totalmente em consonância com a cosmovisão africana, que é holística e compreende tanto o sagrado quanto o profano no mesmo espaço, será um motor para as narrativas. No conto em questão, a protagonista precisou se esforçar um pouco mais para compreender por que razão uma mulher pobre e desconhecida, que lhe ganhou uma esmola, estava oferecendo a ela sapatos. “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje” marca o entendimento profundo da ação: proteção e caminho.

Imagens inusitadas, prenhes de elementos mágicos, saltam dos contos de Cidinha da Silva. Em O homem da meia-noite, é delicioso perceber Exu no homem que descansava a perna estropiada numa grade. Rua erma, noite, há todo um clima para o medo e o mistério. A mulher pede proteção: Laroiê! E uma surpresa se revelará para a leitora, o leitor. Em Metal-metal, os princípios da cura africanos se encontram com a medicina chinesa: não à toa, essas curas pressupõem o ser como força, como encadeamento de energias vitais que podem ficar livres ou obstruídas. É saber ancestral africano a manipulação das energias, pelos elementos naturais (animais, minerais, vegetais), para alcançar o bem-estar da comunidade. Exu, como princípio de movimento que é, Rei do Corpo, também circula as vias internas.

Se a sabedoria herdeira do culto aos orixás e divindades africanas (iorubá e angola-congo) encontra personagens e cenários neste Um exu em Nova York, em tudo a autora trata da diáspora e dos seus efeitos. A história das pessoas africanas no Brasil é marcada pela violência desde sempre. Sequestrados de seu lugar, sem direito sequer ao próprio nome, as africanas, os africanos e seus descendentes tiveram que reinventar um mundo dentro de um sistema opressor e de hegemonia branco-macho-hetero-católica. Essa reinvenção – calcada na cultura, saberes que traziam, na ligação com a ancestralidade, nas características comunitárias de viver com o diverso – tornou-se um caso exemplar de resistência de um povo. Em Kotinha, a autora detalha a invasão de um templo de candomblé por evangélicos. Do lado dos criminosos, há um deus capitalista da teologia da prosperidade; do lado dos terreiros, cuja existência, por si só, já é resistência, os mundos e os tempos “Sasa” e “Zamani” se juntam.

A cosmovisão africana destaca o passado e o presente. Esses dois tempos se intercalam. “Zamani” é o tempo mítico, o tempo dos ancestrais. Os tempos se comunicam de forma não linear. A morte, por exemplo, na cultura iorubá, é apenas retorno da matéria ao seu lugar primordial. No conto Jangada é pau que boia, a matéria do homem se entrega às águas. No conto Sábado, a narradora encontra um homem que, à beira de um lago, oferta flores a Kissimbi (do panteão angola-congo) pelo nascimento do filho, mas guarda uma tristeza em relação à morte, apesar de compreendê-la.

Não tendo a atenção centrada no futuro, a cosmovisão africana não abriga escatologias como o céu ou o inferno cristãos; nem mesmo o conceito de culpa ou pecado. Em filosofias cuja práxis se dá no bem-estar da comunidade, a atenção se foca sobre o ensinamento dos anciãos e ancestrais, na responsabilidade do indivíduo diante do grupo. Os ritos fúnebres selam a compreensão e aumentam a força do “Zamani”, pois transfere a força vital de um tempo (presente) para outro (passado), assim como os nascimentos aumentam a força do “Sasa”. É uma filosofia do equilíbrio. Uma filosofia ecológica.

O passado não é estanque, é um lugar de ensinamento e memória que conversa com o presente. O ancião e o ancestral possuem lugar de destaque. No conto O velho e a moça, a jovem pergunta ao velho (Ayrá e Agodô), que lacrimeja todo o tempo, pois traz nos olhos “a memória das águas”, se deve contar o vivido. Ao ouvir a resposta “conte o que fizeste dele, minha filha”, quer saber se bastaria. O velho então, Xangô, responde: “Se basta não sei. Aviva”.

Avivar, tornar mais vivo, encher de ânimo, de alma, avigorar-se. A palavra em Cidinha da Silva surge também como grito sobre essa plenitude negada pelo racismo e pela necropolítica. Em Maria Isabel, Cidinha da Silva expõe uma das duras realidades do percurso de uma pessoa negra no Brasil: a vida curta, quase sempre interrompida/ceifada pela violência social e racista. A personagem narradora está morta e, fato raro, morreu de morte natural. No mesmo conto, a falácia da meritocracia que, se mantém apenas os brancos nos cargos de poder, é por não haver oportunidades minimamente viáveis para os negros.

Em Válvulas, há espaço para a desilusão amorosa e o assédio do pastor da igreja. A sorte foi existir Iansã e seus ventos. As personagens de Cidinha da Silva sabem ler objetos que caem do nada e se quebram. Também uma bonita história de amor em No balanço do teu mar. Em Lua cheia, filhos crescidos, casal mais velho, uma das lições do machismo: hora de o homem trocar de mulher. Nesse conto, de condução de ritmo excelente, mais uma vez o elemento mágico assume importante papel, quando a mulher preterida vê o marido fazendo para a rival coisas que jamais fez para ela. No final, temos a sensação de ter ouvido uma daquelas histórias de justiça – ou vingança – que as avós do mundo poderiam nos contar.

Marina traz uma homenagem à escritora Natália Borges Polesso. É um conto sobre o desejo de ser amada e sobre o acaso, sobre a fragilidade da vida humana. Sonho e realidade se misturam, ficando para o leitor a condução do final. Em Farrina, um pouco do retrato da diáspora como experiência comum das pessoas negras no mundo inteiro. O conto se passa em Nova York e mostra o reconhecimento dos negros entre si. Tanto lá, quanto cá, as marcas no corpo e o descaso com as políticas públicas para a população afrodescendente.

É interessante notar no conto Mameto, a ausência do preconceito contra o diferente, no caso, o envolvimento amoroso da zeladora da Casa com uma das frequentadoras (o dilema que aparece na personagem é ético, é ausente a questão do pecado ligada à orientação sexual). A comunidade aceita a vida conjugal das duas mulheres na medida em que não há mal algum para a comunidade, ao contrário, as duas mulheres vivem harmonicamente. Os orixás aparecem não para julgar, mas para celebrar o novo encontro e a alegria de uma existência que agora se tornara mais plena e prazerosa. É muito bonito o conto. E é sempre trazendo o movimento que Exu aparece.

O manda-chuva é um conto impactante. Poucas vezes o assunto do reprodutor e da reprodutora sexuais são tratados na literatura brasileira. Assunto da máxima importância, o silenciamento sobre ele também esconde os fundamentos da cultura do estupro no país. O manda-chuva conta a história de um ser humano escravizado obrigado a fazer filhos em meninas que não queriam a relação sexual, muito menos poderiam ficar com seus filhos, feitos para a venda. “Chegou a fazer 60 filhos num ano, entre as negras da fazenda e outras da região cujos donos o alugavam”. A história é de uma violência máxima e absurda, que Cidinha da Silva conduz de forma primorosa, deixando claro que não se viveria tamanhos horrores sem resistir/reagir de várias formas.

No conto Akiro Oba Ye!, jovens moradores da Vila das Alterosas convivem com a especulação imobiliária que os expulsa e o tráfico que perturba suas vidas. De maciça maioria trabalhadora, a favela convive com o grau máximo do descaso político da República. Rosa de Matamba, Mary de Anya, Robério de Ogunjá, Áurea de Obasi, Eduardo Ajagunã e Emerson Xoroquê ao longo do conto serão transformados, pela linguagem, nas divindades que representam. O conto é fascinante também pela forma.

Em Dona Zezé, conto delicioso, aprenderemos que, com perspicácia, é possível enganar a Deus; assim como aprenderemos em Tambor mineiro que há quatro batidas para o tambor e que ai daquele que toca o objeto sagrado sem permissão.

Cidinha da Silva encerra seu Um exu em Nova York com o Sá Rainha. A anciã líder que se paramenta pela última vez para morrer. Sua dor, resistência e sua despedida emocionantes não poderiam fechar melhor um livro que grita a dignidade das mulheres e homens que, por sua existência, quando tudo lhes é contrário, são o próprio milagre deste país.

Exu nos traz à encruzilhada e continua nos perguntando qual caminho vamos seguir.



Todos limpos, sem furos nas roupas, sem manchas de sangue. Surpresos ao reencontrá-la ali no lugar onde vagam. Sá Rainha chora e agradece à Senhora do Rosário. Passa a mão pelo rosto de cada um dos filhos, beija-os. Fala da saudade. O povo vai se juntando. Cerca a Rainha, os meninos. Tá caindo fulô/ tá caindo fulô!/ Lá no céu/ cá na terra/ oi lerê, tá caindo fulô!.
Sá Rainha sai do abraço dos filhos. Afasta-os, carinhosa. Abaixa-se e risca o chão com um caco de telha. Pontos que ninguém ali sabe interpretar. Coloca o bastão no chão. Chora baixinho ao tirar a coroa, deposita-a na terra.
Os filhos vão desaparecendo. O povo também. Ela fica sozinha com suas insígnias de realeza depostas. Aos poucos, Sá Rainha também some no tempo. Restam o bastão e a coroa à espera de alguém.
Êh Tempo! Êh Tempo! Zaratempô! Êh Tempo! Êh Tempo! Zaratempô! Êh Tempo! Êh Tempo! Zaratempô!” (p. 73)

***
Um exu em Nova York
Cidinha da Silva
Contos
Pallas
2019

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Lauren, de Irka Barrios





Por Adriane Garcia


Lauren, de Irka Barrios (ed. Caos e Letras) começa com uma fuga. A menina Lauren, de 13 anos, corre de alguma coisa que ainda não sabemos exatamente o que é, mas sua fuga desesperada já nos acena algo de Inquisição.

A história se passa em Novo Bosque, uma comunidade rural, fortemente religiosa, em que os habitantes se dividem em neopentecostais e católicos, vivendo de maneira pacífica; desde que, como diz Lauren, ninguém se destoe.

Destoar é o que faz Lauren. Já começando por sua forma física. Fora do padrão de beleza, a garota sofre bullying constante na escola. Seu apelido principal é Sapona. Os colegas até decoraram uma musiquinha para quando ela passa: “Laren bucho, Lauren sapona, Lauren baleia, saco de areia.” As tentativas da personagem de vivenciar a amizade são um fracasso.

Não tendo paz na escola, Lauren talvez pudesse encontrar no lar o acolhimento para passar a adolescência, mas ali também ela enfrenta o inferno. A família neopentescostal, desde os 6 anos de Lauren, de pai omisso e mãe fanática, colabora para que a protagonista se sinta absolutamente forasteira no mundo. Forasteira como Inês, a fantasma que, segundo a lenda de fundação da cidade, amasiou-se com um homem casado e assassinou seus anfitriões. Novo Bosque é, nas palavras do pastor, uma comunidade herdeira do pecado.

A menina cresce ouvindo que o demônio a irá tentar, cresce ouvindo sobre tentações às quais não poderá sucumbir e é neste clima de muita oração e nenhum diálogo, de misoginia aplicada, de obscurantismo e solidão que Lauren se encontra enquanto foge.

Obviamente que um livro que toca no assunto religião e religiosos não poderia deixar de mostrar a face da hipocrisia. Fazendo o trabalho que o Estado deveria fazer, as igrejas se aproximam dos mais necessitados e se aproveitam para exercer poder, político e íntimo. Não raro descambando para o assédio e a violência sexual. Pais que, tão preocupados em localizar o demônio não conseguiriam reconhecê-lo a um palmo do nariz (ou do espelho); aliás, não conseguem ver que a filha volta da escola machucada.

Alguns leitores poderão encontrar em Lauren uma história de terror sobrenatural. Outros poderão encontrar um retrato psicológico de uma personagem que, vivendo em um ambiente claustrofóbico, preconceituoso e inóspito para a vida – que requer liberdade para sua plenitude – manifesta uma imaginação dominada pelo medo, pela superstição, pelas formas simbólicas do mal, toda vez que se encontra em um momento de grande tensão. Pode bem ser o terror real que, cada vez mais, se alastra nas casas brasileiras e que passa a morar dentro das mentes, contribuindo para a tragédia nacional.

Sentado em frente à TV, o pai aguardava o chamado para o jantar. Trocava de canal com total desinteresse até que parou numa emissora de séries americanas. O comercial mostrava trabalhadores entediados que perseguiam um sonho difícil de realizar. A música de fundo, uma batida eletrônica estimulante, demonstrava que tudo daria certo, você alcançaria o objetivo. Mesmo que demorasse cinco anos ou mais, seu lugar no ranking dos vencedores estava garantido, bastava acreditar. Na mensagem final, o senhor Johny Wlaker, de fraque e cartola brancos, caminhava sobre um fundo preto até sua silhueta ser impressa na garrafa quadrada com o precioso líquido dourado.
Keep walking.
– Tá na mesa – a mãe poupou Lauren de chamar o pai. Vestia cores escuras: camisa marrom fechada no colarinho e saia preta até o joelho. Sentou-se sem questionar a nova disposição.
Serviram-se, os três, de cabeça baixa. O único ruído presente era o dos talheres riscando o vidro dos pratos ou tocando as bordas das panelas. A televisão da sala permanecia ligada, num volume em que as palavras são indecifráveis para o ouvido humano. Mostrava uma reportagem sobre o comportamento de um bando de macacos nada amistosos. Lauren ousou erguer o olhar para a tevê por um momento. Onde estão Adão e Eva, mamãe? Quis perguntar, não teve coragem. Não fosse a língua comprida da serpente, Adão e Eva estariam lá, no Paraíso, sem saber o que fizeram de errado. Os macacos e todos os animais não agem da mesma forma? Maldita cobra traiçoeira que avisou sobre o que é feio e constrangedor.” (p. 62/63)

***
Lauren
Irka Barrios
Romance
Caos e Letras
2019

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Não és tu, Brasil, de Marcelo Rubens Paiva




Por Adriane Garcia


Entre outras mil/ és tu Brasil/ ó, Pátria amada


Esse excelente e essencial romance Não és tu, Brasil, de Marcelo Rubens Paiva começa com uma dedicatória:

Este livro é dedicado ao meu pai, Rubens Paiva, que viveu como poucos, fez o que deveria ser feito, e foi morto porque arriscou ser solidário.

O pai do autor, Rubens Paiva, preso pela ditadura militar em 1971, torturado e assassinado, foi um dos tantos desaparecidos políticos do regime criminoso.

Em Não és tu, Brasil, o narrador, em primeira pessoa, conta-nos de sua infância e adolescência no Vale do Ribeira, na cidade de Eldorado, sul de Minas Gerais. Misturam-se ficção e fatos históricos, em uma ambientação do cotidiano de cidade do interior, ao mesmo tempo em que se vai mostrando o retrato do país pré e pós AI5.

Por minha determinação e disciplina virei o mascote da turma e o queridinho do instrutor. Era o começo de um ano pesado, 1969, nas aulas muitos inscritos, executivos apavorados pelos novos tempos, convencendo, por tabela, esposas e filhos a se armarem e prepararem para o pior; organizações de guerrilha ameaçavam famílias de donos de jornal, banqueiros capitalistas, estrangeiros imperialistas, empresários que financiavam a repressão e americanos suspeitos de pertencerem à CIA. Um pedaço do Brasil se armava, era tudo ou nada. E eu solto por ali.

A centralidade dos acontecimentos se dá entre abril e maio de 1970, quando o Exército Brasileiro descobre que o guerrilheiro Lamarca e seus companheiros estão no Vale do Ribeira – Lamarca tinha escolhido o lugar para criar um campo de treinamento para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O Exército, então, envia 1500 homens para combater menos de uma dezena de jovens.

Marcelo Rubens Paiva, de maneira hábil e munido de farta pesquisa histórica, recria o cerco aos guerrilheiros da VPR, além de retratar a violenta repressão que vem após o cerco. Não és tu, Brasil denuncia o modo como o Estado brasileiro tratou o cidadão, com todas as garantias suspensas, fazendo amplo uso das prisões, torturas e assassinatos.

Foi a partir da operação no Vale do Ribeira que o Exército repensou sua ação contra os guerrilheiros e militantes, inclusive desaparecendo com os corpos para que, assim, não houvesse a chance de trocá-los nas ações de sequestro da guerrilha. Foi também quando o exército profissionalizou a tortura trazendo o Doi Codi, dando carta branca para os torturadores, sem estabelecer qualquer limite, na implantação do que, na falta de melhor palavra, pode-se chamar de barbárie.

Uma personagem que chama a atenção na narrativa é a tia Luiza, a tia guerrilheira. Crítica dos costumes e da moralidade vigente, tia Luiza encanta o sobrinho, além de instalar o inusitado entre os conservadores.

Com três vértices – cada capítulo é denominado Vértice 1, Vértice 2 e Vértice 3 – Marcelo Rubens Paiva encontra as pontas desse triângulo dos horrores chamado ditadura militar. Com uma linguagem clara, fluida, objetiva e domínio de ritmo, o livro oferece uma história forte e densa.

Não és tu, Brasil fala das pessoas que deram a vida para mudar o país e instaurar a democracia. Sem romantismos, de forma complexa, ajuda a entender e a sentir aquilo que não podemos admitir que aconteça novamente. Um apelo à humanidade e à memória.


“ – Josimar mora por aqui? – perguntei ao balconista.
Sei não.
E Batico?
Sei não.
E seu Avelino, Zeca França, Ribeirinho, Benê, Ari Mariano, Edgar Carneiro, João Cândido, Zé Arantes, Laudico, Gérson, Feliciadade, Jairo Moraes, Doenha e Bartira, a que levou um tiro dos guerrilheiros?
Que guerrilheiros?
Paguei e voltei para o carro. Estrada que vai dar na Caverna do Diabo; recém-asfaltada. Fui em frente. Construído um outro bairro, um ginásio de esportes, vizinho ao campo de futebol, novo armazém, oficina de tratores. Duas lombadas, não mais cidade. Laranja e banana. Uma curva, o pasto, a cachoeira abandonada, o lago e a sede da fazenda no alto do morro, cercada pelo muro mediterrâneo; na mesma cor. Fazenda Apassou, não uma qualquer, mas meu berço, meu passado. O abacateiro? Não existia mais. Nem a fazenda se chamava mais Apassou.
Entrei à direita, estradinha que dá no rio. Lá no meu tempo uma praia natural de areia branca, acampamento de todas as crianças e das bandeirantes. Não existe mais; venderam a areia. Desci do carro, pensei em dar meia-volta, imagens me provocando, passado atropelado pelo fim desgovernado. Mortes, abandonos e falências saíram dali.” (p. 95)


***
Não és tu, Brasil
Marcelo Rubens Paiva
Romance
Ed. Objetiva (Cia das Letras)
2007









quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Carta à rainha louca, de Maria Valéria Rezende








Por Adriane Garcia


Os direitos são criações humanas. Assim como existem, podem deixar de existir. Basta, para isso, que a conformação da sociedade mude, que não se vigie a existência ou a vigência de um direito, que se façam novos (ou velhos) arranjos de poder. Os direitos das minorias são conseguidos a duras penas, depois de lutas cumulativas que levam décadas, por vezes séculos e a permanência desses direitos (porque nunca existem pela benesse dos poderosos), vive sob tensão, sob o perigo dos ataques.

É no cenário permanente de ataque aos direitos das mulheres, que hoje enfrentam, no Brasil, o aumento do número de agressões e feminicídios, tendo à frente do país um homem que disse a uma parlamentar “só não te estupro porque você não merece”, que Maria Valéria Rezende nos dá a conhecer o seu Carta à rainha louca.

Para além de sua importância política, como literatura que reflete o seu tempo, mesmo quando pesca nas águas do passado, Carta à rainha louca é um livro que permite a fruição prazerosa da leitura, aliando vivacidade da história narrada com construção de linguagem, ironia e humor.

A narrativa se passa entre 1789 e 1792, a partir de uma carta que Isabel Maria das Virgens escreve à rainha de Portugal, Maria I, a Rainha Louca, que foi educada para o canto, a pintura e a adoração a Deus, e não para administrar um reino falido e povoado de ideias iluministas. Isabel, a protagonista, está presa, há muitos anos, em um convento de recolhidas, em Olinda, sem julgamento, nas eternas prisões provisórias de que o Brasil insiste em fazer muito uso, quando nas garras da lei caem as pretas, pretos e pobres.

Isabel, porém, é branca. Órfã de mãe muito cedo, foi cuidada na senzala pelo fiel amigo de seu pai, o africano Gregório. Mais tarde, dama de companhia, Isabel se percebe na classe de mulheres que, na época colonial, não serviam para nada: não tinham dote para um possível casamento nem eram empregadas na lavoura.  Com a perdição e tragédia de sua senhora, ludibriada por um sedutor inescrupuloso e narcisista, ela se vê com a vida completamente transformada.

Nessa trajetória, Isabel conquista seu maior e talvez único tesouro: aprender a ler e a escrever. É pela leitura e pela escrita que Isabel busca a salvação diária. Nesse sentido, Carta à rainha louca é também uma grande e comovente homenagem à escrita e à literatura, principalmente à literatura escrita por mulheres. Aprender a ler torna Isabel Maria das Virgens mais instrumentalizada para lutar pela vida e pela liberdade. O saber como uma arma para a vida prática:
Tantas e tantas cousas que se havia por saber e tão úteis e tão possíveis de se vender aos que nada sabem e todos os dias lutam contra o caos que advém das cousas materiais se as deixamos sem vigilância – saberes que, por se referirem a cousas comezinhas, não causarão espanto ao ver-se que os possua uma simples mulher. Saberes para mim tão preciosos continha que eu já cismava em sair logo dali para o verdadeiro vasto mundo e em como todo aquele conhecimento me serviria para ganhar tostões e comprar liberdade.”

Certamente, uma mulher que lê, que escreve e que ousa, demonstrando coragem e inteligência, rompendo padrões é tida como louca. É assim, de louca para louca, que Isabel busca a empatia da rainha; Isabel busca sororidade.  Em sua carta, denuncia os abusos de toda sorte que acontecem com as mulheres e os desvalidos na colônia, os abusos dos poderosos e os abusos da Igreja, intrinsecamente ligados na época colonial. Sua carta é sua petição de defesa, mas é também a petição de defesa de todos que como ela sofrem. Isabel se sente assemelhada tanto aos escravizados quanto a uma mulher que, ainda que rainha, era proibida de ser qualquer coisa que não aquilo que lhe determinaram. Tanto o patriarcado quanto o escravagismo eram males que deviam ser combatidos.

Carta à rainha louca, escrito com uma mescla do vocabulário setecentista e nossa linguagem contemporânea, delicia a leitora, o leitor; ao mesmo tempo em que dá voz a uma personagem que grita pela liberdade, pela igualdade de gênero, pelo direito da mulher ao seu próprio corpo, pela solidariedade entre os fracos, pela justiça social. Uma personagem que, não tendo todo papel disponível para escrever, precisa poupá-lo e , por isso, conhecemos seu pensamento livre, a parte rasurada em que ela percebe que seria censurada.

Em um mundo onde a mulher não pode sair do lugar estreitíssimo que lhe foi delimitado pelos homens, Isabel será capaz de grandes ousadias. Ousadias imperdoáveis, mas das quais, sabemos, ela não se arrepende.



Percebo, Senhora, que, embora outra desgraça possa me acontecer a qualquer momento e quiçá me veja outra vez sem meios para escrever-Vos, continuo a errar por tantos assuntos sem nenhuma utilidade – a não ser a de dar-me a mim o gozo de escrever palavras – em lugar de dizer-Vos aquilo que é de grande urgência, pois que se o souberdes logo Vos movereis para tirar-me deste inferno. Com os suplícios sobre mim impostos, porém, como já Vos relatei, rodavam minhas ideias como moinhos ao vento e por isso enchi páginas e mais páginas com minha pobre escrita, sem sequer dizer-Vos quem de fato sou e como e por que vim parar a esta masmorra.

Devo confessar-Vos, Majestade, que muitas vezes duvido de quem sou, duvido de minhas lembranças, já não sei se são verdade ou alucinações, e temo que tudo o que tenho imaginado como se meu passado fosse, até mesmo em parte belo em minha recordação como por vezes me parece, não seja senão o meu desejo de que assim tivesse sido. Prossigo, no entanto, minha Senhora porque isto de não se saber ao certo quem é cada pessoa, como vejo por toda parte aqui nesta terra do Brasil, há de ser cousa comum também nas galerias de Vossos paços em Portugal e em todos os Vossos reinos como aprendi dos livros proibidos que li e dos infortúnios que me fez passar Diogo de Távora. Por certo que também ali se cruzam e trocam vênias as pessoas consideradas de qualidade, sem nenhuma prova de que o são, tanta é a hipocrisia, o adultério, a mentira, a traição, a lisonja, o fingimento, a aleivosia, a devassidão, o suborno e a corrupção que por eles campeiam sinto e sei que a única cousa que me pode manter sã a mente, de sorte que eu não naufrague para sempre no mar encapelado dos meus delírios, é o esforço de ordenar as palavras em meu pensamento e no papel, não importando para nada se são verdadeiras – daquela verdade que querem os inquisidores e os juízes – ou se são apenas a verdade do meu desejo e do meu sonho, da liberdade de pensar, que outros consideram insanidade, mas que teima em medrar no mais recôndito de qualquer mulher até mesmo em Vós que, sendo rainha, por natureza nada mais sois que uma fêmea faminta de amor e de horizontes, como todas nós outras, porque assim creio estarem feitos o Vosso corpo e o Vosso coração como os nossos, e deles emanarem os mesmos humores, a não ser que Vos hajam mutilado e oprimido desde o Vosso nascimento para torcer-Vos a natureza e fazer de uma simples mulher uma princesa perfeita, o que não creio, pois se assim fosse haveríeis de enlouquecer, Vós também, sendo por certo muito mais de perto vigiada do que nós que nada valemos.

Por serdes Vós quem sois, sei bem que não tendes tempo a perder com essas quimeras de uma qualquer como sou eu. Apenas para rezar a Deus e aos Santos, reinar e fazer a justiça é que o tendes. É, pois, mister que eu me defenda de mais desvarios e agora me esforce para esclarecer-Vos, ordenadamente, sobre quem eu penso que sou e que direito e necessidade tenho de recorrer à Vossa Piedade.” (p. 51)



***
Carta à rainha louca
Maria Valéria Rezende
Romance
Alfaguara
2019








sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Da existência enquanto gato – de André Ricardo Aguiar




Por Adriane Garcia


Um gato é um ser de encantamento. É preciso ter perdido muito da conexão com a natureza, com a vida, com o Mistério para não reparar em um gato, quando ele está por perto. Um gato não passa despercebido por quem está vivo. Talvez seja um bom teste: se vemos ou não um gato.

Escrever sobre um ser de encantamento e mistério, que figura na admiração e imaginação de nossa espécie desde os primórdios – lembramo-nos da deusa egípcia zoomórfica Bastet, corpo de mulher, cabeça felina – é tarefa que requer uma penetração silenciosa no outro mundo: o sutil. Quem sabe o mundo sutil não seja um outro mundo? Talvez seja este mesmo, mas isso só um gato poderia nos responder.

O gato, tradicionalmente, habita a companhia de escritores e bruxas – além de ser um dos animais preferidos das crianças – ou seja, gato é feito sob medida para os que intuem. Poetas podem ter tamanha predileção por gatos, que chegam a compará-los com poemas, pela imprevisibilidade de ambos. André Ricardo Aguiar, em sua plaquete Da existência enquanto gato (Fresta Editorial) brinda os leitores – e os amantes dos gatos – com vinte poemas em que o gato é (e como poderia deixar de ser?) figura soberana.

Alguns desses poemas já nasceram clássicos, como é o caso de Loa para um gato:

Loa para um gato

O gato, ele é todo uma antena
um clérigo de patas, uma ponte
qualquer para atingir o nunca
de esquivez – todo ele mil gatos.

Todo ele parte de si e nenhuma,
fácil de perder-se na sombra,
mover-se felinamente para o mistério
do quarto – que mal respiramos.

Não consigo sequer tocá-lo,
inútil é a ilha do seu nome.
Sua filosofia jamais suportaria
Os gestos bruscos, as fomes.

Não o temos. Um gato tem-nos.
E sua leitura é sermos lidos
por ele, sermos menos que uma
ideia felina, um chamado.

O acento interrogativo do rabo
diz que o bicho é uma pergunta
que não quer resposta. Seus olhos
de desdém são segundas garras.

Deixá-lo ser. Respira-se melhor o ar
volátil enquanto a lenda estremece.
Nem roca nem fuso no íntimo do lar.
Tece-se aqui um gato.

Em Da existência enquanto gato, André Ricardo Aguiar desenvolve uma poesia de fino humor, situações inusitadas como encontrar um gato após a morte e saber que o céu dos gatos é o inferno dos homens. Também há flagrantes deliciosos de pensamento: o gato nos desloca e desnuda, ensina que nosso modo de vida é inútil porque não aprende o vagar nem a verdadeira presença.

Os místicos sabem que os cães protegem o mundo físico e os gatos, o mundo espiritual. Afirmam que à noite, enquanto dormimos, o gato, animal noturno, filtra nossas energias negativas e, durante o dia, enquanto estamos em vigília, o gato dorme, livrando-se do que nos limpou. No poema Carta do gato ao possível dono, ele (eu-lírico-felino) nos avisa: “três quartos de um gato/ tem um deus vigilante”.

Há que se registrar que poemas não se salvam apenas pelos temas, poemas são, antes, a capacidade de trazer o tema à linguagem. André Ricardo Aguiar domina a feitura desse artefato. Sua poesia é exata, lúdica, instigante e imagética. Sua observação do mundo (no caso, do gato) consegue trazer versos como estes, em Sustentável: “o sossego contido na pupila/ como um sol que derrete”. No poema Cadeado, um caso curioso é não sabermos se o eu-lírico é um gato, ou se é o poeta em pleno zoomorfismo.

Lendo Da existência enquanto gato podemos formular perguntas como: ver um gato é vê-lo ou imaginá-lo? Parece muito mais que um gato nos vê: “Não menos fiel que o cão, o gato/ é o verdadeiro amigo imaginário.”

A boa dose de culpa no poema Il castrato, mostra que o “dono” não aprendeu muito com “seu” gato. Afinal, castra-o e apresenta justificativas e minimizações, muito mais para aliviar a consciência de si mesmo que para o gato. Atribui à castração o efeito de tornar o gato um monge, quando um gato o é de qualquer forma (e jamais carrega culpas).

Da existência enquanto gato pertence àquela poesia que aprisiona nossa atenção, que concentra nosso silêncio para que possamos olhar na tentativa de ver. Dos assombros que um gato acrescenta à nossa experiência está seu pulo, salto. Repare: um gato está e não está. Vinte poemas convidam para essa beleza e sensibilidade.


Como flagrar um gato caseiro
[A Marco de Menezes]

Deve-se começar por um movimento furtivo da tarde
e ir pondo aqui e ali móveis caseiros e um ar poroso
de seres que fazem uma impossível sesta em dia de trabalho.

Ou se o fundo melancólico do barulho do elevador
indicar que o dia existe por conta própria, também a sombra
dos livros irrequietos para uma próxima mudança

Pode-se dispensar a existência de Deus, mas não suas tramas
Azuis e alguma hipótese gotejante ali na cozinha. Um frêmito
(caça a um rato imaginário) ali nas dobras da louça lavada.

João Gilberto baixinho no rádio, uma maçaneta da porta
com defeito, e pouco a pouco, lentamente, almofadas e gato
se distinguem, o último pula ao chão com a mesma gravidade

de um astronauta já ciente de que a lua é toda sua:
a casa deserta.


***
Da existência enquanto gato
André Ricardo Aguiar
Poesia
Fresta editorial
2019

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Desnorteio – de Paula Fábrio





Todas as famílias felizes se parecem entre si;
 as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.”
Leon Tolstoi


Por Adriane Garcia


A sensação de terminar a leitura de um livro e imediatamente querer recomeçá-la, não por não ter entendido algo, mas para não perder absolutamente nada, para repetir a fruição de uma linguagem intensa e rica é um dos presentes que Paula Fábrio, com seu Desnorteio, oferece.

Desnorteio (ed. Oficina Paula Fábrio) foi o romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2013, ganhando agora a segunda edição. A primeira foi pela editora Patuá, em 2012. A história se passa em Sorocaba, interior paulista; porém, antes de falar da história em si, é preciso falar do labirinto.

Um labirinto existe para desnortear os que o percorrem. Desnortear é, sobretudo, perder o senso de direção, não saber para onde se vai, podendo estancar ou prosseguir, sem nenhuma garantia ou mapa. Podemos estar desnorteados por não possuirmos uma bússola ou porque nossa bússola não é confiável. Pode ser que tenhamos a sensação de andar a esmo ou que, caminho controlado, tudo deu em nada: erramos. Não compreender nos desnorteia. Labirinto é, por excelência, metáfora.

O mais famoso labirinto, o de Creta, construído por Dédalo, ainda contava com um recurso de crueldade maior, o Minotauro, o monstro metade homem, metade touro, que devorava aqueles que lhe eram oferecidos. Estar no labirinto é ser dado em sacrifício: mas por quê? Por quem? Para quê? Essas perguntas respondidas equivaleriam a descobrir o sentido da nossa existência. No mito grego, Teseu conseguiu derrotar o Minotauro com o fio de Ariadne, desenrolado ao longo do percurso.

É instigante quando um livro consegue fazer o tema encontrar a forma a ponto de parecer que não poderia ter outra. Não por óbvio, mas por exato. Desnorteio é labiríntico: seus múltiplos narradores vão dando a trama, capítulo a capítulo; de forma não linear, ao mesmo tempo em que tecem para o leitor as personalidades uns dos outros, em um misto de ficção e memória. A estrutura da narrativa é fragmentada, com capítulos curtos, ora na primeira, ora na terceira pessoa, utilizando algumas vezes recursos da dramaturgia. A autora chama o leitor para a imagem, fecha-o na cena, usa até mesmo os recursos da luz e da sombra teatrais, do foco, enquanto seu personagem/ator permanece estático ou se movimenta, à sua direção:

BENÉ. MAGRO COMO UM QUIXOTE. Sempre dizia natal é nozes, flores, straus, champanhe. Ríamos dele. Um riso que se travou em nossas faces. Chamaram a polícia. O rapaz é bobo. Está a seguir mulheres. Caso arquivado. Personagem em posição de descanso no meio do palco.
As luzes recaem no desvão do tablado. Um quarto estranho com um homem curvado na cama. (...)
Miguel entra em cena. Tem o rosto iluminado. Sua imagem abrindo a porta do casebre. (...)

De imediato, pode-se dizer que Desnorteio é a história de uma família. A família Oliveira. Na profundidade, porque assim são as histórias que de algo tão particular erguem o universal aos nossos olhos, Desnorteio fala do labirinto que é a condição humana; da falta de sentido de percorrê-lo. No meio do caminho pode haver miséria, loucura, doença, velhice e, fim das contas, a morte sempre nos espera. O romance trata tanto da complexidade psicológica quanto das consequências da restrição material. É também uma crítica da pobreza e um retrato dos miseráveis que abundavam o milagre econômico brasileiro da Ditadura Militar na década de 70.


Em uma cidade do interior de São Paulo: o Brasil. A escravidão, o racismo e o machismo na raiz; a década de setenta, os anos 80. Os dias atuais, em que uma narradora, da qual não sabemos o nome e que é caracterizada pelo tempo (tem quarenta anos), narra. É ela a voz que se impõe à dos demais, sem causar qualquer desequilíbrio na narrativa, e é ela quem puxa o fio de Ariadne. Depois disso, apresenta-nos, entre outros, seus tios Dôrfo e Bené, os loucos; Miguel, o vagabundo. Tia Teresa, a senhora de cabeleira branca que ensina a morrer; Vó Carmela e a prima Carminha, o pai e a mãe Oliveira, Inês, a cigana; o irmão engenheiro, Fábio e a dentuça Maria Luiza. Também os tipos populares dos quais a igreja se apropria depois de perseguir, como Nhô João.

Se a família é o que – no senso comum – nos norteia, fornecendo o amparo para a segurança e o pertencimento, Paula Fábrio, corajosamente, expõe o contrário. A tal família tradicional é, inúmeras vezes, disfuncional e, nesse caso, muito mais contribui para a nossa perdição que para o nosso encontro. O labirinto é também uma espécie de “matrioska” em que o labirinto maior (o da miséria, por exemplo)contém a família, que contém o indivíduo, que contém a sua própria individualidade. O corpo é outro labirinto. A família, quanto mais disfuncional, mais é lugar para estarmos perdidos, mostra Paula Fábrio.

Nesse micromundo, o familiar, onde estabelecemos nossas primeiras e talvez mais definitivas relações, treinamos e aprendemos a agir e reagir, a situar e demonstrar (ou não) nossas emoções; é o primeiro lugar onde amamos e odiamos, onde nos alegramos ou colecionamos mágoas. É o primeiro lugar que nos dá limites, podendo tanto nos fornecer asas quanto mutilá-las, em alguns casos para sempre. A mulher de quarenta anos, de Desnorteio, registra um momento singular (que é sempre em oposição àquela/àquele que nos cuida), o da percepção da identidade:

Naquela manhã, eu acordara cedo para fazer uma expedição ao local onde estava o objeto que despertara minha curiosidade inocente. Com o auxílio de um banquinho, pude espreitá-lo com autonomia. O espelho. Foi nesse momento que constatei, pela primeira vez, que eu não era minha mãe, nem mesmo a extensão dela.

Tratando as emoções de modo complexo – como elas são – Desnorteio acrescenta a ênfase ao incômodo. A família Oliveira, no seu modo disfuncional, produz pessoas que se incomodam entre si – não que elas tenham essa intenção – mas é o que fazem. O leitor sabe o motivo de cada um, mas não o personagem, que mesmo o mais coadjuvante é protagonista de si. Da pobreza, da violência doméstica, do preconceito, das doenças não tratadas, do incesto em segredo, do abandono (itens familiares tão familiares) seria raro tirar algo que não fosse o incômodo e a vontade de fuga. Essa vontade, inclusive, fica bem representada no irmão engenheiro que, conscientemente, trabalha para abandonar a família. Cada um a seu modo procura a fuga. O contraponto do incômodo é o alívio. Aquele ou aquela que incomoda devem ser deixados o mais longe possível, longe da vista, longe da sala de visita, longe da vida em comum, em um manicômio longe da cidade. Uma família disfuncional sempre lembra o que se quer esquecer. Não à toa, é conhecido o sentimento de alívio quando um parente de relacionamento difícil, que nos envergonha ou que dá muito trabalho, morre.

O resultado por sentir alívio pela morte de um familiar ou mesmo desejar a tragédia sobre um dos nossos, como o desejou explicitamente Dôrfo, gera a culpa. A culpa tanto pode vir em forma de tormento psicológico quanto na materialização de uma lata de goiabada ou na doação de alguma pequena quantia de dinheiro. É assim que Maria Luíza pede desculpas por ter superado a pobreza, enquanto seus entes queridos estão na mendicância. Famílias têm espaço para muito arrependimento e quando o amor e a conveniência estiverem na mesma batalha, pode bem ser que a conveniência ganhe.

Paula Fábrio traz em Desnorteio o amor torto das famílias disfuncionais, ou aquilo que se naturaliza chamar de amor – ou que a cultura manda chamar de amor – mas que olhado friamente, poderia ganhar outros nomes. Miguel, por exemplo, parece amar de maneira torta. Assim como Dôrfo só ama o proibido e sua violência pode advir do fato de lhe ser proibido o amor ou a fala sobre esse amor. Miguel talvez seja uma janela de redenção para o leitor observar, pois afinal, o amor aparece nem que seja de relance. Alguns podem achar sentido em muito infortúnio e um pouco (avaro) de amor; sentimento que redime, mas parece insuficiente diante de tanta desolação. Como é que se aprende a amar em famílias que desamam? Como se explica a frouxidão dos laços entre os irmãos depois que o pai e a mãe morrem, senão pelo amor obrigatório?

Ler Desnorteio é penetrar no esforço de se localizar no labirinto, de percorrer-lhe as partes para vê-lo de cima, em panorâmica. Para se entender a própria história é preciso que se “Recoste o ouvido sobre o azulejo e ouça. Está tudo lá”. Essa a escuta que Desnorteio proporciona e incita, um eco de sabedoria sobre pensar a vida em nível profundo, ter a coragem de remontar os destroços, imaginar as partes que faltam, percorrer os caminhos de perder-se, embrenhar-se no passado para que o presente possa ser libertado. Paula Fábrio constrói uma narrativa instigante, que demonstra seu olhar arguto para o mundo e para as relações. Olhar sem julgamento, sem concessões, cru, mas não sem compaixão:

É vital saber. Penetrar-lhes o pensamento. Capturar as peças que faltam. Completar o neurótico quebra-cabeça. Parar o tempo, organizar as falas, estabelecer o conforto da lógica. E as mãos permanecem atadas. E as palavras não servem mais. Aos quarenta, as perguntas se moldam à falta de respostas.

Desnorteio dá de cara com o Minotauro e pelo fio da palavra escapa.

***
Desnorteio
Paula Fábrio
Romance
Ed. Oficina Paula Fábrio
2ª edição
2019