Por Adriane Garcia
Se reparar bem, as paisagens estão inclinadas. É preciso um olhar aguçado, um certo silêncio, uma capacidade de perceber a integração do humano com a natureza para se dar conta desse acontecimento. Há algum tempo, Michaela Schmaedel vem nos brindando com uma poesia que fala de um mundo holístico, cujo centro é o sentimento de solidão. Do paradoxo de partilhar do Todo e estar só ela seleciona sua matéria.
Longe de estar irmanado com a paisagem, o ser está em conflito com ela – pois em conflito consigo – servindo-se da natureza, pela linguagem, para falar de si. Essa fala, tomada de melancolia (além de uma ironia triste) se estica como “um anjo/ de braços longos”, mostrando o poder da poeta de – criando imagens - gerar um clima sensorial.
Temperaturas e cores, topografia e vento, mar e céu, texturas, ambientes fechados e abertos, Paisagens inclinadas traz uma poesia em que o corpo é o tradutor do mundo – de dentro para fora e de fora pra dentro.
Dividido em quatro partes, este livro nos fala de ciclos, do recomeçar que tanto é dádiva quanto pedra de Sísifo. Há algo de luta por estar vivo a cada manhã, algo de resistência contra a medicamentalização da vida pelas saídas anestésicas: a poeta tem coragem de olhar e cada olhar é – já que um tanto animista e fabulatório – fuga e enfrentamento. Mas não falamos de atribuir uma alma ao mundo. Falamos de uma poesia capaz de trair o senso comum, de um animismo invertido em que é a nossa falta de alma que se reflete no nosso entorno.
Michaela Schmaedel trabalha com associações que alumbram e surpreendem. Há uma riqueza de figuras de linguagem que se junta a profundas reflexões, como deve acontecer na melhor poesia. Tanto o mundo urbano quanto os desertos ou as terras campestres e distantes figuram no mesmo mapa cardíaco: “Como calar/o que não é sólido/ao coração?” A riqueza de suas metáforas adensa, cria espaço visual, enquanto a presença de outras espécies animais colore a voz de um eu-poético capaz de uma comunicação silenciosa – e audível.
Paisagens inclinadas é feito de matéria refinada, resultado de um labor que busca exatidão e, brilhantemente, nos comove.
FENOMENOLOGIA
Reparar o comum
o muito conhecido
uma flor
por exemplo
pensar na estrutura
no ciclo
nos detalhes
com uma flor
se pensa o presente.
PRESENTE
Viver o campo
o campo é a casa
flores amarelas
em meio ao verde
vigoroso
viver o campo
o campo é a casa
como se a morte
fosse agora.
ANDES
Há sempre neve no Aconcágua
álamos amarelos
uvas roxas
catitas nos campos.
O que vemos primeiro
a pré-cordilheira
é sempre uma ilusão.
DELÍRIO
Um bem-estar
se esconde sob a ironia
atormentar os vivos
e os mortos
com a teoria de dias
mais capazes
o mundo desmoronando
e eu aqui
pensando em versos.
***
Paisagens inclinadas
Michaela Schmaedel
Poesia
ed. 7 Letras
2022