terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O alumbramento na poesia de Victor Paes - O Óbvio dos Sábios, por Adriane Garcia






    Adentro um templo. É preciso. Há livros que não podemos ler de qualquer jeito, nem em qualquer lugar, temos que tirar os sapatos para pisar o tapete, depois o chão. E temos que sorvê-los como sorvemos demoradamente uma xícara de chá. Um chá de nuances, um chá de aguçar percepções.

    Da primeira vez que peguei este livro, eu não estava pronta. E ele, o livro, objeto mágico (os livros são objetos mágicos de vontade própria) não se entregou a mim. Ele não me deu seu significado. Ele me disse: aquieta-te e depois volta. Eu aguardei minhas férias e assim o fiz. E quando voltei, descalça, ele me disse: Agora podes.

    Uma arma na capa. Uma arma enrolada em faixas de gaze, um coldre para enfermos, uma arma obstruída para ser carregada, mas com destaque para o gatilho; uma arma para desuso, porém, com capacidade para atirar.

    Abro. E o que vejo é iluminação. Percorro não só os versos, percorro mais, percorro os espaços vazios da página, muitos. Victor Paes caminha pelo silêncio, é no silêncio que escreve, é no silêncio que quer ser lido.


respirar é inventar o vento
mastigar é revelar a língua
cantar é cantar o silêncio



1


(uma garça na avenida
levanta voo
e esboça um rio)


pinçar do furacão uma linha
e desenhar um chão na terra


rir
do outro lado do curso do rio


falar por línguas alheias
e chorar de cansaço ao fim do dia


___


na face oculta do crânio
reorientar o horizonte
concavar-se


pois recolocado à cabeça
(amargo o que foi cristalino)
o olho é mais que um grito do rosto



    Não tenho como não me lembrar de Auden, W. H. Auden, e a palestra dada em 1956 na sua aula inaugural da Universidade de Oxford (Fazer, Saber e Julgar, tradução de Ângela Melin, editora Noa Noa):

"Um poema é um rito. Na poesia, o rito é verbal."

" Mas é dos encontros sagrados da imaginação do poeta que desperta o impulso para escrever poemas."

"Para que possa escrever um poema genuíno, o poeta tem de sofrer o encontro..."


    Victor Paes se encontra com as coisas, joga sobre elas uma luz e as refaz, diz-nos de imagens invertidas, assusta-nos com declarações:


"o princípio do gato é seu rabo"


"um olho
abre uma fenda na luz"


"toda montanha contém uma caixa"


"um corpo começa onde outro começa
distração de pertencimentos"


    É tudo óbvio, se estamos em silêncio. Dizemos: sim. É o óbvio dos sábios. E os sábios não dizem nada de novo. Apenas nos lembram de acessar repositórios essenciais e antigos, guardados de nosso interior, de nossa ancestralidade. Poesia.


1

ser
sobra 
da ambiguidade das estrelas



2

náufrago (da seleção natural do mar)

precioso bem guardar
seus pesadelos...



1

no fim da asa da mariposa
(em seu migrar último, de bilhete a lâmpada)
o nome da lagarta que foi



2

toda assinatura é um suspiro de agonia


    
    Termino a leitura emocionada e grata. Uma inesquecível xícara de chá no meio do caos. Olho através de minha janela e tento, agora que ele me disse, "coar o céu de nuvens falsas". 

   Paul Valéry chega e me relembra: "o poder do verso é consequência de uma harmonia indefinível entre o que ele diz e o que ele é. Indefinível é essencial à definição".

    Fecho o livro (não sem saudades). Fecho o portal. Ganhei mais uma dimensão.


Adriane Garcia




VICTOR PAES nasceu no Rio de Janeiro em 1978. Editor, professor, ator e escritor, publicou os livros de contos Deus ex machina (2011) e Mas para todos os efeitos nada disso aconteceu (2010). Participou de diversas coletâneas, entre elas, Minigeschichten aus Brasilien (2013), de contos brasileiros, publicada na Alemanha, e Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro (2013). O óbvio dos sábios é seu primeiro livro de poesia, publicado em 2007 e reeditado em 2015 (Confraria do Vento)






2 comentários:

  1. Bom, muito bom. Foi-me indicado por uma amiga (Heloisa Davino) e gostei bastante mesmo.

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    1. Ei, Ruben. Sim, um livro e tanto. Uma poesia diferenciada, trabalhada e sentida. Luz sobre as coisas. Bom dividir impressões com você. Abraço.

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