Por Adriane Garcia
“Apanhar, obedecer, saciar.
Apanhar, obedecer, saciar. Apanhar, obedecer, saciar.”
(p.
259)
Eu
já conhecia o trabalho anterior de Cinthia Kriemler, Na escuridão não existe cor-de-rosa, livro de contos do qual gostei
muitíssimo. Quando peguei, há alguns dias, Todos
os abismos convidam para um mergulho (ed. Patuá, 2017), não tinha a menor
noção do que se tratava. Sei que comecei a ler num dia e no outro já havia
terminado. Eu simplesmente não conseguia parar a leitura; nos momentos em que
outras atividades me exigiam, ficava ansiosa precisando voltar.
Passei
dois dias mergulhada na vida de Beatriz, entre sustos, revelações e crueldades.
A protagonista de Cinthia é um abismo escuro, misterioso, fascinante. É Beatriz
quem narra sua história, seu mundo, tudo aquilo que viu e vê. Desta maneira, é pelos
olhos dela que o leitor passa a enxergar. Abismo dela, abismo nosso, Beatriz chama
o leitor cada vez mais para o fundo: “Deixai
toda esperança, vós que entrais.” Dante ficaria surpreso com o inferno que
podemos criar entre nós.
Enquanto
acompanhamos o trabalho de Beatriz, que é assistente social e atende vítimas de
violência em situações de risco, mulheres e crianças violentadas, adolescentes
prostituídos por seus próprios pais, também partilhamos de seu grande conflito:
o suicídio da filha, Laura, que sofria de depressão. Beatriz não pode se
perdoar por não ter percebido a depressão da própria filha enquanto cuidava dos
filhos dos outros, culpa que carrega e que, a seu modo, tenta resolver na
compulsão pelo sexo.
Ler
este romance e caminhar com Beatriz é adentrar num dos lados mais escuros de
nosso país. Todos os abismos convidam para um mergulho é também uma denúncia
escancarada da infância e da violência contra a mulher no Brasil. De forma
brilhantemente literária, Cinthia Kriemler constrói uma narradora complexa, uma
mulher forte, feminista, independente, que se tornou dura por recusar a si
própria o estereótipo de mulher frágil, que conseguiu se desconstruir, mas que
não conseguiu sua reconstrução. E é na tentativa dessa reconstrução, onde
parece só haver o erro, que tanto o que há ao redor de Beatriz quanto o próprio
processo vivido por ela vão convergir para o mesmo ponto.
Algum
dia quebraremos o círculo vicioso que a violência contra a infância inicia e
que parece sem fim? Que esperança haveria para uma sociedade que maltrata
crianças, que estupra meninos e meninas, que exerce o machismo e a misoginia
com naturalidade? Que esperança haveria para vidas que nem nasceram?
“Antônio atirou na mãe. Eu sei que
foi ele. O advogado também sabe. Mas não é isso que advogados fazem? Mentem,
mentem, mentem. Com muita seriedade. Convencem. Tudo o mais é interpretação. A
minha é de que Antônio nunca nasceu. Gente nasce de mãe e de pai, não de
esperma e óvulo. Cópula, concepção, gestação é ciclo de bicho. No de gente,
entra afeto. É preciso ser sonhado, esperado, idealizado, amado para se nascer.
Antônio é só mais um animal parido. Eu sempre reconheço os afins.”
(p.
132)
Todos
os abismos convidam para um mergulho é um livro excelente, mas, mais que isso,
é um livro necessário. Um livro sobre tantas coisas que negligenciamos, sobre o
preço alto do desamor.
“Uma mulher deve morar sozinha. Por algum tempo. Por muito tempo. Para sempre. Para
ter o controle ou o descontrole da sua própria vida. Para escolher entre ser
independente e depender do que quiser. Para se decidir pela liberdade que lhe convém,
não pela que convém aos outros. Para aprender a prestar contas de horários,
erros, decisões, copos de vodca e sexo apenas a si mesma.
Uma
mulher deve saber que com os homens acontece diferente. E que por isso eles não
sabem o quanto tudo isso representa. Porque nascem sob o privilégio do
masculino. Porque crescem sob o privilégio do poder. Sem ranços, nem
obstáculos, nem preconceitos condenando sua existência a um patamar inferior.
Privilégio não é palavra feminina. Conquista é. Essa luta por uma paridade
urgente que nos convoca a umas, mas não a todas. Essa capacidade de nos
livrarmos da injustiça que nos espera na sala às cinco da manhã.
O
que me dói não é encontrar Gustavo me esperando, esbravejando como papai fazia.
Nem a mão dele apertando meu braço com força para me cobrar explicações. Nem as
palavras horríveis que ele me diz antes e depois de eu mandar ele sair da minha
casa. Só o que me dói é a cegueira. A minha cegueira longa e burra.”
(p.
155-156)
***
Todos
os abismos convidam para um mergulho
Cinthia
Kriemler
Romance
Ed.
Patuá
2017
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