Por Adriane Garcia
Você abre o livro e encontra
uma mulher com uma faca afiada em uma das mãos. Com a outra ela
ajeita o cabelo. Em seguida, pega a pedra de amolar. Essa a imagem
que dá as boas vindas no livro Jogo de Facas (ed. Quixote, 2016), de Thais Guimarães.
Respire, não há flores na recepção, Thais não quer enganar. A
sala em que você vai entrar é branca, das paredes ao teto, há um
quê de assepsia, é dessa assepsia também que Thais quer nos falar.
Em contraste, na maca de aço, a vida será dissecada. É a própria
poeta que se dá em holocausto. Jogo de facas procura o sangue que
corre nas veias, procura algo em que se sujar, quer achar as vísceras
e já encontrou. Nada salva e jamais faz sentido.
Num projeto de inteligência e
muita sensibilidade, esse livro, orgânico, faz a forma encontrar o
tema. Os versos são – o próprio título do livro já revela –
da família cabralina; sem excessos, o corte se faz com exatidão,
ritmo e essência.
Dividido em quatro partes,
planos de corte, linhas de incisão, provas de corte e pontos de
sutura, os poemas se desenvolvem sem piedade alguma com a vida (o
caçador aqui se torna a caça), por consequência, com o leitor.
Não importando se a metáfora nos leva ao açougue ou ao hospital,
se as mãos são de assassinos ou legistas, as facas são o
instrumento necessário para a sobrevivência, a escolha é matar ou
morrer. Ter uma faca, Thais deixa claro, é estar de posse da
maturidade, é ter crescido, é calcular. A poeta disseca com a
firmeza de quem não quer mais se distrair. A distração pode ser
fatal. Crescer é ter perdido. E dói.
Dessa dor, a luta diária, a
batalha, Thais retira as metáforas da guerra, dos instrumentos
perfurantes, tesoura, navalha, gume. Por incrível que pareça, há
delicadeza nos versos, ao mesmo tempo que uma violência de punhos
cerrados, de golpes. A salvação, o amor, aparece, num primeiro
momento, como desejo, sonho e sexo; em seguida, como mais uma
violência oferecida pela condição humana, mais uma arma para nos
vencer. As facas cortam, o amor, navalha, rasga na fragilidade da
carne, deixando as entranhas expostas. Aos poucos, os versos revelam
nosso corpo, nossa casa frágil; se quiser ir mais fundo, será
preciso calçar luvas de aço.
Jogo de facas, porque jogo,
revela-se, prossegue, desmentindo a própria ideia inicial, a de
cálculo, a de incisão suficiente, a de mão que não treme; a vida
não é ciência e, apesar do cálculo, não há controle. A prova
disso é que Jogo de facas é também um livro que mostra uma
tristeza profunda, dessas que somente poetas podem amplificar.
Rasgados, da cabeça aos pés,
resta-nos o reconhecimento de tal ferida, a resignação e a
constatação diante do espelho. Mais esta faca: o tempo.
grau de visão
envelhecemos
e não há forma amena
para contar tempo
o que passou
a imagem devolvida
pelo espelho
diz tudo
sem palavras
os olhos
já não veem
(sem óculos)
o que não precisa ser visto
Em um trabalho de muitas
imagens, a do corpo aberto pela faca é o retrato resumo da nossa
fatalidade, “um pássaro se debate/contra si mesmo/ na janela”.
Antes do sossego que só a morte pode oferecer, o pesadelo da
memória: “vento que incomoda”.
Em Jogo de facas a poesia
demonstra beleza, crueldade e controle. A poeta se vinga do acaso. A
vida não se completa, a plenitude de sua realização não se dá, a
vida é o sono porque não se faz inteira ou consciente. O desespero
é silencioso e cansado, como devem ser as cirurgias de risco. Não
por acaso, dois grandes gritos no livro são os poemas Sylvia Plath,
“na pele escura da noite/riscar a alegria/ – fósforo – / na
fátua palavra/ meteoro”, e Alfonsina Storni, “na noite
constante/ o álcool perde o lugar// em meus afogamentos/ hei de
beber o mar” , duas escritoras que cometeram suicídio.
Por fim, largar a faca e
cozer. Resta a sutura por passarmos a vida esperando o que não é
factível. Thais depõe a faca sobre a mesa, senta-se e municia as
agulhas:
“o corpo que me prepara/
que menos me fere/ é aquele onde me deito:/ firme cama de ferro/fino
leito de pregos”.
Um livro valioso. Dos que se
ficam a sós com o leitor.
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