Por Adriane Garcia
O
livro que me acompanhou durante esta semana foi O exercício da distração, da
poeta Kátia Borges (ed. Penalux, 2017). Li-o duas vezes, para melhor ficar
distraída. A distração que Kátia oferece é aquela que nos faz sair do mundo
ordinário. Não à toa, a capa traz acrobatas em equilíbrio no topo do Empire
State, uma fotografia de 1934. Mas que diabos fazem três pessoas numa
performance arriscada e inútil? Que diabos faz Kátia, construindo um livro de poemas
(antes: lançando um olhar para a poesia das coisas), recusando-se a ser simples
engrenagem neste sistema que apenas quer nos consumir o tempo de vida, apertando
seus parafusos?
O
exercício da distração é uma resposta rebelde. Uma resposta rebelde silenciosa,
visto que a poesia é capaz de se comunicar no silêncio do outro. É rebelde
porque se insere no mundo do cansaço, e teima: “Dizer do medo, a coragem/com a
qual dançamos a vida/sem descalçar os sapatos”.
Dividido
em três partes, Como se fosse o órgão vivo, Fugas extraordinárias e As pequenas
vilanias da cidade, o livro se comunica o tempo todo com seu título. A distração,
a inadaptação, o mundo como um não-lugar
para os sensíveis, para a sensibilidade. A máquina do capital a massacrar as
pessoas, explorá-las, matá-las, cotidianamente, enquanto buscam a sobrevivência
e o amor.
O
amor, em O exercício da distração, é a “caça inútil”, a busca difícil, mas a
busca da qual não se pode fugir, a busca necessária. O amor “arrasta os
astros/pros lugares certos” e dá sentido ao que não tem. É o grande consolo, é
a mão próxima, a possibilidade da dor compartilhada: “estou cansada de sentir
este aperto no peito//amo esta mulher que diz que passa”. Ao mesmo tempo, não
há ingenuidades, há uma maturidade nos versos de Katia Borges que não permite
ilusões. A fantasia é proposital, a fantasia é um mecanismo de quem escolheu
dar conta do mundo pelo seu avesso, mas com total consciência do processo. Este
poema, que me lembrou dos momentos finais de Lorca, dá a dimensão do conflito
tão presente neste trabalho:
Teu
movimento
Antes
que te chame
o
pelotão de fuizilamento
repara
o pássaro
apara
o dia.
Há
um olhar que se derrama
lento
sobre a vigia
e
graciosidade no andar
do
carcereiro.
Antes,
sim, que chamem
o
teu nome, anota
num
papel ou na parede
certo
verso de cimento.
Na
argamassa firme
teu
movimento.
A
distração é o exercício da liberdade, exercício cerceado, que só pode acontecer
como desobediência, estranheza ou mesmo loucura, como a poesia. Já nos títulos
de alguns poemas, a poeta brinca riscando palavras: Anotações para um poema
sobre pássaros (sapos) flores. É assim, nas brechas, que se vai
criando possibilidades de escolha para se inventar a própria autonomia. A poeta
anda presentemente em sua cidade, indaga o mistério das perdas e sabe da
resignação quanto a essas fugas, observa o mundo para além do que ele quer
mostrar – falávamos sobre a distração como ato de rebeldia, a poesia como
recusa à cegueira imposta.
Os
poemas são de grande musicalidade, e há imagens imperdíveis, como em Hashi: “tão
tristes os três tigres/do I Ching/espreitam o amor, a caça inútil// seria bom
se descansassem/o peso das pernas,/seria bom se repousassem/o rosto nas patas”.
Por
fim, O exercício da distração é um livro que traz paradoxos. Se por um lado, a
distração parece que aliena, Kátia vem mostrar que, ao contrário, a distração é
o que nos mantém vivos e acordados. E, obviamente, ela não está falando da
distração permitida, da distração de massa, que quer fechar os olhos, banalizar
até o ponto de não mais se poder perceber. A distração de que Kátia fala é
aquela que nos abre ao desejo de molhar a planta que avistamos na varanda do
vizinho, tão próxima ao nosso apartamento, afinal
“A
vida é esse verde entre nós.
Talvez
os biólogos nos expliquem
a
fluidez do amor, a essa altura.
Serei
melhor se lançar água
e,
dessa distância que penso segura,
salvar
uma begônia.”
Um
livro lindíssimo. Para ler e reler.
*
O exercício da distração
Kátia Borges
Editora Penalux
2017
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