Por Adriane Garcia
Nestes dias, estive em outros cantos. Mais
especificamente em Olho d'Água, sertão de Pernambuco, lugar imaginário e tão
real, criado por Maria Valéria Rezende. A edição de Outros cantos,
primorosamente editada pela Alfaguara, traz,
já na capa, a aridez do sertão, assim como a algaroba, árvore frondosa
do semi-árido brasileiro. Delicadamente, muito discretamente, um coração entre
as folhas, feito fruto – sabemos que o que irrigaria a Terra é amor. Abaixo,
areia, pó, terra seca esvoaçante como a dos desertos.
“Um bando de meninos me espreitava. Nos peitos, o
teclado perfeito das costelas expostas; nas costas, saliências pontiagudas,
duros cotos de asas cortadas antes mesmo de que vissem a luz por primeira vez.
Nus vieram ao mundo e nele permaneciam, quase nus e inocentes, não por serem
incapazes de fazer o mal, mas por serem ignorantes do mal que lhes podia ser
feito. (p. 15)”
Não há como ler este romance e não se envolver e
se emocionar. A narrativa é feita em linguagem primorosa e, ao mesmo tempo,
simples. Maria Valéria Rezende escreve para se comunicar com o maior número
possível de leitores. Sua comunicação é dom e o que ela tem a dizer nos deixa
despertos para a realidade. Realidade de uma comunidade que se repete por
tantos brasis, marcada por fatores históricos, sociais e culturais que a retêm
na miséria material, latifúndio e a confirmação da máxima “o problema do
Nordeste não é a seca, é a cerca”; realidade de nossa condição humana, tão
independente de geografias.
A história se passa enquanto a personagem Maria
está num ônibus de viagem, quarenta anos depois, voltando para o sertão. O
lugarejo é Olho d'Água, local onde estivera para alfabetizar jovens e adultos,
na época da ditadura militar brasileira, no programa MOBRAL. Nas lembranças de
Maria, já idosa, o leitor acompanha Maria, a jovem revolucionária, sonhadora e
crente no poder de mudança da palavra escrita e da leitura. Porém, o que Maria
descobriria (e o leitor) é a força da linguagem oral, a força e a beleza do
povo sertanejo. Maria, que fora para Olho D'Água ensinar, descobre que só
poderia aprender com esse povo ágrafo.
Entre cenas marcantes, com grande poder de fixação
na imaginação do leitor, Maria Valéria Rezende traz o vigor que este cenário
rural alcançou, por exemplo, com Raquel de Queiroz, Guimarães Rosa e Graciliano
Ramos. Impossível, depois de ler Outros cantos, esquecer-se do tingimento das
redes, dos quartos abarrotados pelos grandes teares, das conversas noturnas
debaixo das algarobas, apenas sob a luz das estrelas, da primeira e única vez
que o povo de Olho d'Água viu um cinematógrafo; dos penitentes mortificando a
própria carne, sofrendo mais do que já sofrem, para que a chuva caia no dia de
São José; das mães gastando sua única água para que os meninos fossem limpos no
seu primeiro dia de escola. Impossível esquecer-se de Fátima e sua
solidariedade absoluta, a solidariedade de quem aprendeu que não se vive
sozinho em duras condições de sobrevivência.
Outros cantos desenha, na memória de sua
personagem, um cruzamento de tempos e espaços, a protagonista fazendo
comparações de seu cotidiano no sertão pernambucano com o cotidiano de outros
cantos em que estivera: o deserto da Argélia, o México, Paris. O leitor vendo,
pelos olhos desta autora, esses seres humanos e aquilo que temos de diferente e
comum, para o bem e para o mal.
Chorei inúmeras vezes lendo este livro, chorei de
tristeza por reconhecer a ambição humana, gerando dificuldades extremas para tantas
pessoas, cujos sonhos se reduzem a conseguir viver apenas mais um dia; chorei
de alegria por perceber o alcance que a palavra de Maria Valéria exerce na
duração e após a leitura, chorei, sobretudo, pela beleza alcançada numa obra,
sim, magistral. Quando fechei o livro sabia que chorar era um sintoma causado
pelo instrumento, talvez principal, utilizado por sua autora: a empatia. Ao
usar a empatia de forma tão natural e verdadeira, com recursos literários
belíssimos, Maria Valéria Rezende desperta a empatia de seu leitor. Daí,
levamos o livro em nós, saímos a olhar com outros olhos os outros cantos.
Talvez, nunca mais passemos por aquele homem que mora debaixo do viaduto, na
região Sudeste, exposto a toda discriminação e perigo, sem pensar que ele provavelmente
abandonou Olho d'Água depois de tentar de tudo, depois de enterrar mais um
filho subnutrido, deixando mulher e outros filhos, que eternamente o esperam.
Outros cantos não é um livro do qual dizemos “leia
porque é muito bom”. Outros cantos é um livro que dizemos “leia porque é
essencial, leia porque é necessário, leia porque é sobre política, sem ser,
leia para conhecer o Brasil”. Se a personagem Maria acreditava na palavra
escrita e lida como a sua missão em Olho d'Água, a autora Maria Valéria Rezende
a continua, onde seu livro alcance. Que ele alcance muito mais.
“Expliquei-me
como pude. Não, menti, ou não menti, pois nem eu sabia ao certo, aquilo não era
saudade de ninguém, não, e nem culpa do povo. Ao contrário, era o medo de ter
de ir embora, o vereador que não resolvia nada, não trazia o contrato e o
material prometidos e eu por isso esmorecia, já quase sem esperança de ser
professora e poder ficar por muito tempo. “Você diz que de família só tem pouca
gente, espalhada em outras terras e quer ficar aqui, que a gente é sua família
escolhida. Ah, pois! Então aprenda que aqui o que mais se carece é de
paciência, saber esperar. A gente vive esperando, a noite, o dia, a chuva, o
rio correr de novo, esperando menino, esperando a safra, notícia, o caminhão do
fio, o tempo das festas, visita de padre, tudo coisa que custa a chegar
(...)”(p.123)
***
Outros
cantos
Maria
Valéria Rezende
Romance
Ed.
Alfaguara
2016
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