“(...)
O meu agora é mais eterno que este
minuto. Guarda a melhor tempestade. Não funciona um guarda-chuva. Eu sou o que
você não leu.” ( p. 246)
Há
alguns dias estive fisgada por um livro. É o Escrevo ao vivo, de Anízio Vianna.
O livro, que traz 264 páginas, volumoso, em geral, para uma coletânea de
poesia, me surpreendeu porque dá conta da quantidade, com qualidade. É livro de
pegar e só largar no final; embala, leva, encanta. Há nele contundência,
beleza, fina ironia, um tipo muito especial de fé e empatia enorme.
Anízio
consegue fazer uma poesia descomplicada, abordando temas sérios, de maneira
profunda; dando conta do mundo com suas inúmeras referências. Ao utilizar
principalmente as notícias de jornal como motor para a escrita em Escrevo ao
vivo, Anízio reporta ao leitor acontecimentos atuais, mas, antes, passa-os pelo
filtro da poesia. O resultado são poemas que tratam, por exemplo, de política,
sociedade, religião, religiosidade, violência, violência policial, amor, machismo,
racismo, desigualdade, compaixão.
A
maioria dos poemas traz um número de referência, que ao fim do livro leva o
leitor à notícia que o desencadeou. O livro de Anízio Vianna, assim, além do
exercício delicioso de ler poesia, nos dá o exercício da revisita, um convite
sublinhado para a reflexão e apela para nossa memória, tão fragilizada em
tempos de excesso insano de informações.
É
ainda de se notar, na forma, a força da musicalidade nos poemas de Escrevo ao
vivo. O ritmo privilegia a leitura em voz alta e, muitas vezes, me peguei falando
poemas que quase me vinham como uma espécie de rap.
Com
uma consciência social agudíssima, inteligência, riqueza de leituras e uma
sensibilidade tão necessária para a poesia, os poemas de Anízio Vianna
conseguem um ataque coordenado: cérebro e coração. O leitor, atordoado, só quer
ler mais. Poesia com o pé no mundo, que aprendeu uma das lições emocionadas do
grande Drummond. O tempo presente, os homens presentes, a vida presente é a
matéria de Anízio Vianna.
À D. ELOIZA
Faço um poema p’ra me despedir do
mar.
O mar não entende pedidos nem o aço
das pedras.
Sente que sou da montanha e que
ainda estou às margens
do Rio Arrudas, lugar onde nasci e
hoje infância.
Vila Esplanada:
presídio de mulheres, enchentes constantes.
Minha mãe me tirou de lá com suas
mãos grandes – de calos e reentrâncias –
contra minhas mãos pequenas e lisas
de professor.
Cumpriu à risca o fardo de fêmea:
pariu meu irmão e eu.
Porém, não rompeu a lógica das
estatísticas.
Saiu de São João de Manteninha aos
dezoito sem letra
com suposta data de nascimento na
cabeça.
Desceu na Rodoviária Governador
Israel Pinheiro,
Praça Rio Branco, sem número
e ainda sob efeito do êxtase da
cidade de Belo Horizonte
descarregou as malas,
tirou certificado,
identidade,
carteira de trabalho
e completou seu êxodo.
Esboçou primeiro sorriso
diante do êxito de cruzar destino
quase ilesa:
com calos e reentrâncias nas mãos.
O médico diagnosticou
alergia aos produtos de limpeza,
leve tristeza e hipertensão.
Vila Esplanada:
presídio de mulheres, enchentes
constantes.
Minha mãe me tirou de lá antes da
verticalização
das favelas.
Ela segue sem religião,
mas com uma fé abrupta ora ao
Senhor.
Não sei se com fervor ou um ódio
apaziguado
pelo excesso de amor.
Não sei se com alegria
ou consternada
pelos dias em que foi maltratada
lavando chão.
Já freqüentou a Igreja Universal do
Reino de Deus,
o Vale do Amanhecer,
as Católicas
e Seicho-No-Ie.
Descobriu que deus não mora numa
sacada,
não gira em torno de uma órbita
e que, vez ou outra,
Ele irrealiza os nossos desejos.
(p. 208-209)
***
Escrevo
ao vivo
Anízio
Viana
Poesia
Quarto
Setor Editorial
2016
Gostosa e estimulante resenha, Adriane. Fiquei com muita vontade de ler o livro, do qual já conheci outro poema. Parabéns Anízio Viana!
ResponderExcluirAdorei, Adriane, a resenha e o poema, que instiga a querer mais. Um abraço.
ResponderExcluir