Por Adriane Garcia
Surpresa boa me foi o livro Rocketman (ed. Patuá),
de Rique Ferrári. A edição, além de
bonita, com 22 ilustrações produzidas por tatuadores,
traz uma poesia que nos proporciona, no mínimo, duas viagens.
A primeira delas, a viagem a que um bom livro, por si
só, nos leva. As segunda e demais viagens nos transportam para
vários países da América do Sul: Argentina,
Uruguai, Chile, Peru, Bolívia, Colômbia. Em Rocketman,
Rique Ferrári elabora uma geografia afetiva, onde o olhar
perscruta e refaz as paisagens, atenta-se para detalhes que só
a poesia poderia ver e dar a ver.
Nessa chave generosa daquele que possui e reparte,
Rocketman emociona. São camadas de cores. O olhar deste poeta
é atento à luz nas cidades, especialmente à luz
solar. Em consequência, sua poesia possui amplidão e
privilegia a imagem. Do cenário para dentro, de dentro para
fora, verdadeira usinagem que se manifesta em versos: o desenho tanto
pode se dar na pedra, na arquitetura, nos muros, quanto na pele. As
cores (com predominância para o amarelo) são uma
presença recorrente nesta poesia e um símbolo
da diversidade humana. Há algo de holístico a ser
aprendido: “ – não estamos na natureza, somos a
natureza – ” , na transmutação da noite para o
dia, o próprio homem se transforma.
Viajar é abrir horizontes, contatar culturas. O
bom viajante reflete, repensa, traz para vida o antes impensado do
outro. Um viajante atento desfaz preconceitos, pois viajar é
uma das melhores maneiras de conhecer. Rocketman faz dessas viagens o
motor para a sensibilidade. Elementos corriqueiros, como a chuva, não
lhe passam despercebidos. O olhar de um viajante precisa ter o
frescor infantil para aproveitar a novidade. O poeta, melhor que
ninguém, possui esse olhar infantil, que é também
o olhar do sábio: “sabe-se desde os pré-colombianos:
o sol marca as horas, a chuva o tempo”.
Utilizando-se de versos longos, Rique Ferrári
lida à vontade com a linguagem, permitindo o pensamento solto,
como se deixasse até certo ponto um fluxo. Contudo, os poemas
são bem amarrados, sabem onde querem chegar, mesmo quando
confessam não saber, caso do último poema, homônimo
da coletânea. Também é de se notar a maneira como
sua poesia é brincante, lúdica, com onomatopeias,
ironia e citações por vezes inusitadas; em uma palavra
muito usada pelo próprio poeta, Rocketman tem uma poesia
“transante”.
Tendo o cenário e a viagem como gatilho, Rique
Ferrári desenvolve uma poesia que passa pelos temas do
conflito interior, da observação do mundo, da
contemplação, da constatação da
desigualdade social, da guerra e da violência promovida pelos
colonizadores, dos gestos do cotidiano e da simplicidade como peça
chave para viver bem, da importância da imaginação
e do sonho, das indagações acerca do nosso ser/estar no
mundo e do avesso das coisas. Se a viagem nos deixa tanto, também
deixamos nas viagens nossos resquícios.
Rocketman é uma viagem de foguete para confirmar
a frase de Gagarin, “a Terra é azul”, e para
acrescentar que é preciso que deixemos que a luz amarela do
Sol nos invada. Uma viagem de foguete pode dar a impressão de
ser rápida, mas Rique Ferrári dá direito a belas
paradas, ainda que nos confesse (os poetas são terríveis)
uma verdade tirada do Mistério: “o mundo é só
um dia”.
confissão
roubei duas coisas ontem
as quais, obviamente, não posso revelar aqui
se me apreenderem nos encontros calmos do meio
terei constitucionalmente o direito de permanecer
calado,
o qual já o faço por dever, apenas
deslizando nas leituras
escutando o som de vvvvvvvvvv
ou zzzzzzzz da minha própria respiração
(a depender de gripes)
infelizmente a ladroagem é uma arte
não-reconhecida pelos noticiários
o índice de roubos mente
já que a maioria dos furtos é
desapercebida
e nesta categoria estão chicletes, isqueiros,
bebidas, principalmente
o guiness book dos roubos também mente
não foi o depósito Knightsbridge, em
Londres, o maior furto da história
foram as terras;
a dizer, os colonizadores e colonizados, você
sabe
no entanto, pode-se roubar algo ruim de alguém
bom:
um sentimento podre, um desassossego de domingo, uma
fúria ao patrão
e assim, na bela arte fina, além do ladrão
não ser preso
ainda liberta a queridíssima vítima
está na categoria dos pequenos furtos leves
que ou cabem no bolso ou na consciência.
***
Rocketman
Rique Ferrári
Poesia
ed. Patuá
2017