Por Adriane Garcia
Começa em mar (ed.
Penalux), romance da escritora Vanessa Maranha, traz para bem perto
do leitor mais de uma viagem. Não só a viagem a que um bom livro
leva, mas a própria viagem que a personagem Alice Zuma empreenderá.
Filha de mãe espanhola e pai português, fugidos do salazarismo, a
criança Alice se vê refugiada em uma ilha da Bahia. Ali começará
sua história de inadaptação, cujo sentimento constante será o do
exílio.
Os pais de Alice, no Brasil,
não se adaptam. O conflito é interessante, pois mistura humilhação
secreta com externação de sentimento de superioridade. O pai, com o
tempo, definha, cada vez mais “diminuto”. A mãe insiste em
narrar as glórias do passado europeu, enquanto se recusa a partilhar
dos hábitos locais, inclusive não vestindo a filha como as outras
crianças. Alice irá para a escola com a indumentária espanhola,
mesmo que isso lhe aumente a inadequação de uma infância
visivelmente forasteira. Essa infância determinará o cenário de
Alice, esteja ela onde estiver: o não-lugar.
Simultaneamente à figura do
pai que se enfraquece até desparecer, a mãe vai se “emasculando”
naquilo em que ele se omite e retira; autoritária e cruel: “Para
Concha, sofrimento era pedagogia (...)”. A influência (ou a
falta de influência) do pai medíocre será determinante para o
modelo de casamento da filha, cujo marido, também medíocre, escreve
livros que ninguém lerá, preso no porão do hotel, agora, negócio
em que Alice ganha a vida.
Assim como a incompletude está
presente desde o início da narrativa, o mar é o constante
contraponto: Alice sabe que ele é a possibilidade de encontro,
chegada e partida e nele deposita esperanças de curar uma vida
inteira de faltas.
Deste modo, planeja partir e
descobrir suas origens na Ibéria, mas, inexorável, acaba por
descobrir que também não pertence à Europa. No entanto, é em
pleno mar e somente nele, a bordo de um navio, que Alice descobre uma
natureza sexual desconhecida, sua sexualidade libertina, farta como
as águas do oceano, onde é absoluta senhora de si e de seu corpo.
É interessante notar o
destaque das personagens femininas em Começa em mar, todas trazendo
relacionamentos conflituosos entre si e seus homens, entre si e seus
filhos; também entre patroas e empregadas: “não
se pode amar quem nos chefia, é antinatural”,
sogra e nora. Situações muito próprias da experiência das
mulheres como maternidade, estupro, aborto, objetificação são
abordadas.
A linguagem se aproxima da
prosa poética, às vezes trazendo construções parecidas com o
português de Portugal; utilizando, amiúde, a inversão sintática.
Uma história envolvente sobre despertencimento e solidão, ainda que
nossos pés estejam em terra e que uma multidão nos acompanhe.
Começa em
mar também fala do desejo humano pela volta ao princípio.
É a água o nosso primeiro lugar.
“A ideia era atirar-se no
mar, tornar à água, ninguém nesse mundo suspeitava que em Jordana
tal intenção fermentasse tão lenta e longamente. Eram planos que
desenhava desde muito antes, o perigo, nela, jazia acomodado, sem
iminências nem rompantes, uma fera dormente, delicadamente
alimentada em autofagia, de pouco em pouco a devorando por dentro.
A Jordana sempre sentira
viver uma vida que não lhe pertencia. Nascida em negativo. Ainda
mulher. Muito olho contra, quem sabe perecesse semente mesmo vingasse
não. Desenvolvida para não ser. A mulher era só superfície de
alisar. A mulher era vaso onde despejar tremores líquidos, sua carne
de fundo infinito aberta em rasgo. Pra baixo de réptil, imbecil,
amordaçar-lhe a sua muita fome.” (pg. 120)
***
Começa em mar
Vanessa Maranha
Romance
ed. Penalux
2017
Menção honrosa no Prêmio
Governo de Minas Gerais de Literatura 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário