Por Adriane Garcia
Livro interessante é Nada acontece (ed.
Urutau), de Carina S. Gonçalves. Orgânico, seus poemas
giram em torno do título da coletânea. Nada acontece
capta o vazio e a solidão das vidas que esperam, das vidas que
repetem, das vidas que, diante da rotina, precisam encontrar um
acontecimento.
Esse acontecimento, em Nada acontece, é a
própria poesia e – no caso da poesia de Carina S. Gonçalves
– também a imaginação. Muitos de seus poemas poderiam ser
curta-metragens e nos emocionariam pela simplicidade, assim como seus
versos nos emocionam pela carga de reconhecimento da condição
humana. Os grandes eventos, aqueles que nos tiram do chão, nos
enlouquecem, nos fazem vibrar têm uma onda curta em nossa
história. Hesíodo, em Os trabalhos e os dias
descreve bem a nossa luta: “ É que os deuses mantêm
escondido dos humanos o sustento./ Pois senão trabalharias
fácil, e só um dia,/ e, mesmo ocioso, terias o bastante
para o ano./ Logo colocarias o timão sobre a lareira,/ os
trabalhos dos bois e das mulas incansáveis desapareceriam./
Mas Zeus escondeu-o, encolerizado em seu coração,/
porque o enganara Prometeu de curvo pensar./ Por isso maquinou
amargos cuidados para os humanos,/ e escondeu o fogo. (...)”.
Nada acontece não diz, mas mostra o quanto
estamos presos nas engrenagens e amaldiçoados pelos deuses. O
ordinário é tanto que, num almoço de família,
não somos mais pessoas, estamos fora do poema e o que aparece
como sujeito é o objeto. O objeto pratica a ação
e, depois, de tão repetitiva, somente a ação
passa a existir, invisibilizando até mesmo o objeto:
Concerto para almoço ordinário
de família ordinária 4'33''
o telejornal chia
garfo tilinta no prato de porcelana
boca assopra
jarra enche o copo
suco de laranja desce pela garganta
copo vazio toca a mesa
tosse
passa o guardanapo?
faca serra o pão
faca serra o pernil
garfo tilinta o prato
suco desce pela garganta
copo metade vazio toca a mesa
saleiro chacoalha arroz cru e sal
colherinha de alumínio topa o vidro
do copo cheio de suco
pra que tanto açúcar?
cadeira arranha o chão de porcelanato
suco desce pela garganta
garfo tilinta
faca serra
cadeira arranha o chão
suco desce
copo enche
colherinha topa
cadeira arranha
tosse
arranha
desce
tilinta
serra
chacoalha
arranha
desce
enche
topa
arranha
tosse
chia
Se
não é possível para um simples mortal fugir da
cadeia da vida, que consiste em nascer, crescer, morrer e, neste
meio, trabalhar no sistema de moer gente: “Ganharás o
pão com o suor do teu rosto” (Gen 3:19), Carina S.
Gonçalves encontra a saída subversiva do poema. Tudo
acontece se ela assim o quer, por isso trabalha com a traição
ao senso comum, um humor da fatalidade que denuncia a rotina e a
inversão. Se você acha que a menina de tênis e
saia, ao passar pela garota de burca, julgará que está
em melhores condições do que esta, está
enganado, mas “de nada adiantou o encontro/ de nada/ eu sei/ eu
acho”.
A
matéria dos poemas de Nada acontece é o
insignificante, e é bonito como a poeta consegue nos ligar ao
livro, tirando-nos do ordinário ao nos lançar o
ordinário na cara. Ao significar o insignificante,
ressignificamos, tomamos posse de algo que passaria sem ser visto, já
que a máquina em que fomos inseridos quer-nos cada vez mais
banais, triviais, na vida-morte. No fim das contas, Carina desmascara
o não-acontecimento, pois quando nada acontece, tudo o tempo
todo está acontecendo dentro do ser que narra, esta ilha no
mundo. Andar na sala, passear com as cachorras, notar uma calçada
cujas folhas das árvores não estão mais lá,
pegar o ônibus, notar um rasgo na calça de algodão
preferida, pensar um filme, contar de um fracasso, marcar uma
consulta, “acordar com ganas de comprar um boeing/ ou um
transatlântico”, memorizar a fragrância de um
banheiro no Japão, sonhar em ser poeta, insistir na poesia,
tudo isso enquanto somos puro conflito interno: “perto de onde
estou// meu desejo não está”.
A
imaginação supre o não-acontecimento e a vida
encontra seu alívio seja com um tiro, seja com o fim do mundo,
e não se sabe, na poesia de Nada acontece, se isso é
pesadelo, ou desejo.
Livro
para ler e reler.
poema
vira-lata
o
cachorro vira-lata
é
o que mais se aproxima
de
mim
ele
abana o rabo
nunca
visto
orelhas,
patas e pelos
nunca
vistos
tudo
é novidade
em
um cão
que
não tem raça
nem
ultrassom pra dizer
como
um vira-lata
vai
ser
se
grande
se
bravo
se
louco
se
manchas na pata esquerda
acolho
o bicho misturado
como
um filho
o
bicho independente
que
nem precisa de mim
como
um filho
também
não precisa
como
deixar
esse
bicho
tão
desigual
tão
somente
tão
sozinho
tão
na rua
não
deveria protegê-lo
tanto
ele
precisa virar
latas
eu
preciso virar
latas
eu
e ele
viramos
***
Nada
acontece
Carina
S. Gonçalves
Poesia
ed.
Urutau
2018
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