quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Nada acontece, de Carina S. Gonçalves




Por Adriane Garcia



Livro interessante é Nada acontece (ed. Urutau), de Carina S. Gonçalves. Orgânico, seus poemas giram em torno do título da coletânea. Nada acontece capta o vazio e a solidão das vidas que esperam, das vidas que repetem, das vidas que, diante da rotina, precisam encontrar um acontecimento.

Esse acontecimento, em Nada acontece, é a própria poesia e – no caso da poesia de Carina S. Gonçalves – também a imaginação. Muitos de seus poemas poderiam ser curta-metragens e nos emocionariam pela simplicidade, assim como seus versos nos emocionam pela carga de reconhecimento da condição humana. Os grandes eventos, aqueles que nos tiram do chão, nos enlouquecem, nos fazem vibrar têm uma onda curta em nossa história. Hesíodo, em Os trabalhos e os dias descreve bem a nossa luta: “ É que os deuses mantêm escondido dos humanos o sustento./ Pois senão trabalharias fácil, e só um dia,/ e, mesmo ocioso, terias o bastante para o ano./ Logo colocarias o timão sobre a lareira,/ os trabalhos dos bois e das mulas incansáveis desapareceriam./ Mas Zeus escondeu-o, encolerizado em seu coração,/ porque o enganara Prometeu de curvo pensar./ Por isso maquinou amargos cuidados para os humanos,/ e escondeu o fogo. (...)”.

Nada acontece não diz, mas mostra o quanto estamos presos nas engrenagens e amaldiçoados pelos deuses. O ordinário é tanto que, num almoço de família, não somos mais pessoas, estamos fora do poema e o que aparece como sujeito é o objeto. O objeto pratica a ação e, depois, de tão repetitiva, somente a ação passa a existir, invisibilizando até mesmo o objeto:

Concerto para almoço ordinário
de família ordinária 4'33''

o telejornal chia
garfo tilinta no prato de porcelana
boca assopra
jarra enche o copo
suco de laranja desce pela garganta
copo vazio toca a mesa
tosse

passa o guardanapo?

faca serra o pão
faca serra o pernil
garfo tilinta o prato
suco desce pela garganta
copo metade vazio toca a mesa
saleiro chacoalha arroz cru e sal
colherinha de alumínio topa o vidro
do copo cheio de suco

pra que tanto açúcar?

cadeira arranha o chão de porcelanato
suco desce pela garganta
garfo tilinta
faca serra
cadeira arranha o chão
suco desce
copo enche
colherinha topa
cadeira arranha
tosse

arranha
desce
tilinta
serra
chacoalha
arranha
desce
enche
topa
arranha
tosse
chia

Se não é possível para um simples mortal fugir da cadeia da vida, que consiste em nascer, crescer, morrer e, neste meio, trabalhar no sistema de moer gente: “Ganharás o pão com o suor do teu rosto(Gen 3:19), Carina S. Gonçalves encontra a saída subversiva do poema. Tudo acontece se ela assim o quer, por isso trabalha com a traição ao senso comum, um humor da fatalidade que denuncia a rotina e a inversão. Se você acha que a menina de tênis e saia, ao passar pela garota de burca, julgará que está em melhores condições do que esta, está enganado, mas “de nada adiantou o encontro/ de nada/ eu sei/ eu acho”.


A matéria dos poemas de Nada acontece é o insignificante, e é bonito como a poeta consegue nos ligar ao livro, tirando-nos do ordinário ao nos lançar o ordinário na cara. Ao significar o insignificante, ressignificamos, tomamos posse de algo que passaria sem ser visto, já que a máquina em que fomos inseridos quer-nos cada vez mais banais, triviais, na vida-morte. No fim das contas, Carina desmascara o não-acontecimento, pois quando nada acontece, tudo o tempo todo está acontecendo dentro do ser que narra, esta ilha no mundo. Andar na sala, passear com as cachorras, notar uma calçada cujas folhas das árvores não estão mais lá, pegar o ônibus, notar um rasgo na calça de algodão preferida, pensar um filme, contar de um fracasso, marcar uma consulta, “acordar com ganas de comprar um boeing/ ou um transatlântico”, memorizar a fragrância de um banheiro no Japão, sonhar em ser poeta, insistir na poesia, tudo isso enquanto somos puro conflito interno: “perto de onde estou// meu desejo não está”.


A imaginação supre o não-acontecimento e a vida encontra seu alívio seja com um tiro, seja com o fim do mundo, e não se sabe, na poesia de Nada acontece, se isso é pesadelo, ou desejo.


Livro para ler e reler.






poema vira-lata


o cachorro vira-lata
é o que mais se aproxima
de mim


ele abana o rabo
nunca visto
orelhas, patas e pelos
nunca vistos


tudo é novidade
em um cão
que não tem raça


nem ultrassom pra dizer
como um vira-lata
vai ser


se grande
se bravo
se louco
se manchas na pata esquerda


acolho o bicho misturado
como um filho
o bicho independente
que nem precisa de mim
como um filho
também não precisa


como deixar
esse bicho
tão desigual
tão somente
tão sozinho
tão na rua


não deveria protegê-lo
tanto
ele precisa virar
latas
eu preciso virar
latas
eu e ele
viramos


***


Nada acontece
Carina S. Gonçalves
Poesia
ed. Urutau
2018













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