Por
Adriane Garcia
Por cima do mar (ed.
Patuá), de Deborah Dornellas, conta a história de Vitalina da Conceição Brasil,
mulher negra, historiadora, professora da UNB, filha de pai cearense e mãe
mineira, nascida em Brasília quando da construção da capital do país. Na
infância, moradora em uma favela no Distrito Federal, logo se muda juntamente
com a família para a Ceilândia, cidade satélite.
Indo e
vindo em memórias, a protagonista, depois tornada Lígia Vitalina por uma
ousadia da mãe, reconstrói a própria história e, nesse percurso, leva o leitor
a muitos lugares. É em Benguela, Angola, que a narrativa começa. Fazendo o
caminho contrário da diáspora africana, Lígia Vitalina busca as suas origens e,
na África, reconhece as mulheres que lhe antecederam. Por cima do mar é tecido de muitas delas, são as mulheres que vão
compondo o mundo neste romance.
Ao
oferecer ao leitor a história de Lígia, Deborah Dornellas mostra também uma
parte importante da história do Brasil, a dos candangos, migrantes que, vindos
de vários lugares do país a partir de 1957, dispuseram-se a construir Brasília,
sob condições precárias de trabalho e moradia. A capital não é feita para
abrigar a classe de trabalhadores que a construiu. Pronta, aqueles que não
podem estar dentro do Projeto Piloto são empurrados para as cidades distantes,
sem serviços públicos adequados e sob forte repressão policial.
Também é
destacável que a autora, a partir do personagem José Augusto Luacute, nos dá um
panorama da Guerra Civil em Angola, só terminada em 2002. É comovente a
história do jovem, único filho homem, que é enviado pela mãe ao exterior para
que não lutasse na guerra fratricida. Luacute parte em um cargueiro holandês,
mas não sem culpa por abandonar os seus. À ação de amor e desapego da mãe,
Luacute deve a instrução intelectual e a vida.
Compreendendo,
diariamente, e não sem dor, a diferenciação entre brancos e negros, ricos e
pobres, homens e mulheres, patroas e empregadas domésticas, Lígia Vitalina
busca o seu lugar – a despeito do que lhe deram – nas relações pessoais e
sociais. Deborah Dornellas, neste Por
cima do mar, leva-nos na companhia de uma personagem de muita beleza e
luta. Uma história atravessada pelo racismo, pela misoginia (com um de seus
eventos culminantes: o estupro), pela inadequação e invisibilidade social.
Um dia,
em 1986, na Ceilândia, jovens reunidos para dançar em um baile black, no
Quarentão, foram cercados por viaturas e um policial gritou: “branco sai, preto
fica!” Em seguida, começaram a atirar. É importante lembrar. É importante não
deixar esquecer. Por cima do mar é um
livro que sabe que Minas Gerais e seus pretos, que Paracatu e seu congado, que
Brasília e seus candangos, que Angola e suas zungueiras, que o Rio de Janeiro e
o Mercado do Valongo falam da mesma dor e da mesma resistência.
“Nunca achei que fosse o tipo de pessoa que
faria terapia. Pensava que jamais ficaria confortável com isso. Não porque
achasse que é coisa de gente doida, mas porque achava que terapia não era coisa
para gente pobre. Que uma coisa não combinava com a outra. Era refém dessa
crença inútil, reforçada por preconceito e desconhecimento. E, mesmo quando fui
à primeira sessão, caminhei até o consultório da psicóloga carregando uma
tonelada de culpa no lombo. É gastar dinheiro à toa, bobagem, frescura de
branco, coisa de rico. Escutei essas expressões sei lá quantas vezes ao longo
da vida. Inclusive da boca de gente da minha família. Mas aprendi a impedir que
essa ideia me entrasse ainda mais pelos poros e circulasse nas minhas veias.
Tenho, sim, o direito de buscar ajuda profissional que me auxilie a lidar
comigo mesma e com meus problemas. Todo ser vivente tem. E de pagar uma
terapia, mesmo que com sacrifício, se achar que é o caso. Era.
Sobrevive entre as mulheres negras a ideia de
que, por ser preta e de origem pobre, uma mulher tem que ser sempre forte e
aguentar tudo, sem sucumbir. E sem pedir ajuda. Minha mãe nunca me disse isso
com todas as letras, mas sempre agiu como se esse comportamento estivesse
subentendido. De tia Maria, ouvi absurdos a esse respeito. Minha tia não
segurava palavra. Era uma tagarela para os padrões mineiros. Mas mãe e tia não
foram as únicas que me incutiram essa crença estúpida, da qual elas próprias
devem ter sido vítimas a vida toda. Vi e ouvi muitas vezes mulheres e homens
negros, no espaço familiar, na vizinhança, nas rodas de amigos, falando e
agindo como se para nós, pessoas negras, não houvesse a possibilidade da
fragilidade.
Passei anos da minha vida guardando dentro de
mim todos os detalhes do ataque. Aqueles escrotos me violaram o corpo e a alma
naquele dia. Parte de mim ficou no chão seco do cerrado. Mas ainda estou aqui.
E decidi não mais dar aos monstros o poder de me roubarem o gosto pela vida.
Antes de começar a falar, na primeira sessão
de terapia, captei nos olhos de Míriam, a terapeuta, uma profunda empatia.
Confiei nela e falei tudo que consegui em uma hora e pouco. Agradeci mil vezes
por estar ali e por conseguir falar. Foi a primeira vez que mencionei a palavra
feia sem constrangimento. Estupro. Estupro. Estupro. O que sofri foi um duplo
estupro. Hoje se diz gang rape ou coisa parecida.
Míriam era a terceira pessoa que ficava
sabendo do estupro. Além dela, até então, apenas o professor João Luís e Docas
sabiam. Foram os dois, inclusive, que, cada um no seu front, me convenceram a
procurar ajuda psicológica.
Um alívio conseguir falar da violência que
meu corpo sofreu sem medir as palavras. A ferida ainda dói, mas já não sangra.”
( p. 169/170)
***
Por cima do mar
Deborah Dornellas
Ed. Patuá
Romance
2018
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