“Alguns
autores estão presos à página impressa. Estou preso à página viva, que é a rua”
W.P.
Por
Adriane Garcia
Por estes
dias, estive lendo a biografia de Wander Piroli, escrita pelo poeta e
jornalista Fabrício Marques. O encontro, de Fabrício e Piroli,
não poderia ser mais perfeito. Primeiro, porque sendo jornalista, Fabrício
Marques saberia focar um dos aspectos cruciais da vida do biografado, sua
importância na história do jornalismo entre as décadas de 60 e 80; segundo,
porque, sendo poeta, Fabrício Marques teria (e teve) sensibilidade e
sagacidade suficientes para flagrar a essência e a poesia no ser humano Wander
Piroli, além de falar com propriedade sobre sua obra literária.
O livro,
muito bem editado pela Conceito Editorial, na coleção Beagá Perfis,
tem um formato agradável ao leitor e traz várias fotografias de Wander
Piroli, além de cópias de alguns de seus trabalhos no jornalismo e capas de
seus livros. A linguagem é clara e há muitos trechos de entrevistas nos quais
se pode confirmar o caráter que Fabrício Marques nos descreve.
Uma
biografia, além de trazer os atos e palavras do biografado, os testemunhos
sobre ele, deve traçar-nos o caminho de uma vida única, suas vicissitudes. O
biógrafo refaz, interpreta e revive. O trabalho de um bom biógrafo é difícil, pois
precisa se amparar ao máximo nas fontes, já que as zonas intermediárias entre a
reconstrução e a bisbilhotice, entre a biografia e a hagiografia são tênues. Várias
intenções podem estar na raiz das biografias – de elevar a detratar, e muitas
vezes elas podem traduzir uma “pedagogia do exemplo”. Mas para o leitor, o que
ela deve fazer é fascinar.
Já nas
primeiras páginas dessa biografia fascinante entendemos a relação umbilical do
escritor Wander Piroli com o bairro da Lagoinha – um bairro operário de
imigração italiana que se formou para a construção da capital Belo Horizonte –
e seus personagens: trabalhadores, boêmios, bêbados, prostitutas, marginais,
abandonados de todo tipo, vítimas da injustiça social. É o bairro da Lagoinha,
onde o escritor passou a infância e grande parte da vida, que influenciará não
só sua obra literária, mas suas escolhas jornalísticas. Tendo sido na maior
parte das vezes editor da página policial de jornais, Wander Piroli nunca
dava o fato por si, mas perguntava a razão: “O editor não se limitava à
interlocução com os superiores, estimulava os jornalistas a ir além do mero
fato, como pontua Alberto: “Uma das primeiras recomendações de Piroli era:
‘Busquem sempre os porquês’. Foi procurando o ‘porquê’ que sua equipe
ganhou o Prêmio Esso de jornalismo com o caso Defensor, em pleno regime
militar, ao denunciar a tortura praticada pela polícia contra um trabalhador
até que ele ficasse paraplégico.
Formado
em Direito, Wander Piroli advogou na Justiça do Trabalho por pouco
tempo, indo depois para o jornalismo, onde sempre se destacou. Corajoso,
criativo, anárquico e leal a si mesmo, criou manchetes ousadas, publicou
matérias impublicáveis, desafiou o seu tempo – em plena ditadura – e foi
demitido muitas vezes. Chegou a trabalhar no Suplemento Literário de Minas
Gerais, de onde se demitiu alegando não ter vocação para “coveiro
cultural”. Acreditava que o jornalismo devia ser feito para incomodar o
poder, refletir, melhorar a vida das pessoas. Como escritor não foi diferente,
exercitou a linguagem tentando purificá-la de todo penduricalho, quis
aproximá-la ao máximo da vida – seu sonho era poder ser lido por operários. Seus
personagens são reais, ele os vê, escuta, procura.
Na
literatura infantil inaugurou uma nova forma de escrever, trazendo para as
crianças temas reflexivos. Seu O menino e o pinto do menino e Os rios
morrem de sede, por exemplo, rompiam a visão edulcorada da vida que, muitas
vezes, tenta enganar as crianças. Seus livros fizeram sucesso, dividiram
opiniões, foram considerados polêmicos, sob o argumento de que não se devia
escrever coisas fortes para crianças.
Em Wander
Piroli: Uma manada de búfalos dentro do peito, Fabrício Marques,
além de traçar um panorama completo de seu biografado, atendo-se a muitas
fontes e depoimentos, escuta seu biografado, deixando que ele também fale sobre
si mesmo. Wander Piroli: uma manada de búfalos dentro do peito nos leva
a desejar conhecer mais da literatura desse escritor incansável, que tinha
verdadeira obsessão por melhorar um texto e pressa nenhuma em publicá-lo. Que
acreditava que jornalismo e literatura se misturavam à própria vida e era ele
próprio um exemplo dessa simbiose. Um escritor que tinha muitos amigos e que
era por eles amado. Um homem apaixonado pela vida e cuja paixão – tão bem
descrita – acaba por nos apaixonar também.
“Sem o
menor pudor, declaro que gosto de viver. Sempre tive uma certa incapacidade
para aceitar a injustiça. Nem pensar em futuro, é viver o presente. Eu fui
treinado a não abrir mão da esperança. Acredito numa sociedade melhor, para
mais gente... E creio que tem muita gente com a mesma fé, a mesma esperança.
Sou um homem aprisionado. Mas eu negocio a minha liberdade o tempo todo e luto
por ele. Eu vivi a minha vida, pequenininha, mas eu vivi pedaço por pedaço.
Quem esteve comigo viveu também. Então, eu não admito tristeza. Vivo
intensamente com o meu pessoal, eu gosto das pessoas e gosto deles,
exageradamente, mas não exclusivamente, porque eu gosto de muita gente ao mesmo
tempo. Nunca me arrependi disso e nunca quebrei a cara. Acho que vou morrer
desse jeito, com uma certa insubordinação, uma certa rebeldia. A boa jogada de
viver está, por exemplo, num pedaço de terra na beira do São Francisco. Se eu
pudesse, estaria lá, de pé no chão.” (p. 251)
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Wander
Piroli: Uma manada de búfalos dentro do peito
Fabrício
Marques
Biografia
Conceito
Editorial
2018