Por
Adriane Garcia
Nesse
livro imperdível sobre a história das mulheres, a historiadora Silvia
Federici registra o resultado de três décadas de suas vastas pesquisas
sobre a caça às bruxas, ocorrida desde o final do século XV e ocupando os
primeiros séculos da Era Moderna. Com ápice no século XVI – e não na Idade
Média – a caça às bruxas, argumenta a historiadora, foi primordial para a
acumulação primitiva, que permitiu o acúmulo de riquezas para a Europa e o
desenvolvimento industrial, assim como o próprio sistema capitalista.
Traduzido
no Brasil pelo coletivo feminista Sycorax (nome da mãe bruxa de Calibã,
na peça de Shakespeare, A tempestade), em parceria com a Fundação
Rosa Luxemburgo, e publicado pela editora Elefante, o livro tem uma
edição lindíssima, de 466 páginas de conhecimento, além de belas e impactantes
imagens e muita reflexão sobre o papel que o controle do corpo das mulheres ocupa
na manutenção do poder no capitalismo.
Calibã
e a bruxa é dividido em cinco capítulos: O mundo precisa de
uma sacudida, onde a autora mostra as lutas camponesas e o processo de
consciência de classe, muitas vezes conduzido por mulheres que levavam à
contestação das leis e à exigência de direitos, além da participação como
lideranças nos movimentos heréticos. É bem interessante notar a ênfase no
período feudal, em que a autora descreve uma Idade Média cheia de lutas
comunais e rejeitando a ideia de desenvolvimento linear de progresso. O
capitalismo não foi algo evolutivo – no sentido do pior para o melhor; foi, na
verdade, uma reação a uma consciência coletiva que evoluía. Em A acumulação
do trabalho e a degradação das mulheres, Silvia Federici mostra como
a privatização das terras na Europa (os cercamentos, principalmente) e a
retirada das terras comunais prejudicaram as mulheres. As desapropriações
produziram escassez, aumento da prostituição, incentivo aos estupros e foram
acompanhadas da intervenção estatal no mundo do trabalho e na reprodução,
usando como método a desvalorização do trabalho feminino e implantando o
patriarcado do salário (somente os homens seriam remunerados). Com a mulher
reduzida ao mundo privado, e substituindo um bem perdido (a terra) para o homem
trabalhador, deixá-la sem salário forçou a obediência ao novo papel. No capítulo 3, O grande calibã, a
historiadora centra-se nos processos de controle do corpo da mulher,
considerado um corpo rebelde que precisava por todos os meios – científicos,
principalmente – ser domado. Em A grande caça as bruxas na Europa, é
possível acompanhar que toda a misoginia plantada a partir da perda das terras
e do cerceamento das atividades das mulheres nas comunidades levou a uma
naturalização do genocídio das mulheres, culminando no fato de ser a queima das
bruxas um espetáculo público. No último capítulo, Colonização e
cristianização, a autora mostra como a caça às bruxas na Europa e a caça às
bruxas nas Américas fizeram parte de um mesmo projeto e se serviram do mesmo
aprendizado nas câmaras de tortura, nos interrogatórios que procuravam o diabo,
na demonização das crenças dos nativos, na inferiorização das mulheres;
aprendizado que serve à exploração capitalista ainda nos dias de hoje.
Calibã
e a bruxa faz notar a falta de estudos em Karl Marx,
relacionados ao extermínio de mulheres no processo de acumulação primitiva,
assim como ao trabalho não remunerado de reprodução da mão-de-obra a que as
mulheres ficaram prisioneiras. A autora nota também que Foucault, nos
seus estudos sobre poder, violência e corpo não dá importância ao processo
específico de controle do corpo feminino, na violência e extermínio realizados
na caça às bruxas. Ao mostrar que um processo de proporções tão
gigantescas como a caça às bruxas não obteve a atenção dos dois grandes estudiosos
da origem do capitalismo, Silvia Federici denota a importância de se
rever os estudos históricos, incompletos, quando metade da humanidade não é
levada em conta de modo específico, já que o tratamento da mulher durante a
história é bem específico.
O
trabalho não remunerado das mulheres para suas famílias foi (e é) essencial
para a manutenção e reprodução da mão-de-obra no capitalismo. Camuflá-lo a
ponto de ele não ser considerado um trabalho foi essencial para aniquilar a
autonomia das mulheres e oferecê-las como único bem, para dispor como bem quisesse,
uma compensação, a um homem expropriado pelo próprio capital. Entender a guerra
contra as mulheres é entender grande parte das engrenagens de poder. É entender
que tanto a naturalização do estupro, o seu incentivo por meio de uma cultura,
quanto a proibição do aborto estão ligados a formas de continuar oferecendo as
mulheres como mercadorias, objetos, retirá-las da posse de seu próprio corpo.
Explica não só o passado como explica o reacionarismo que se nota hoje, quando
tanto os movimentos feministas crescem, em número e em amplitude de voz, quanto
o retorno de ideias antigas de misoginia e controle sobre a mulher. O
capitalismo, nos seus primórdios, não inventou a misoginia, mas soube usar
todos os seus ecos – religiosos, principalmente – para silenciar aquelas que,
diante da fome, diante da espoliação, saíram em protestos; daquelas que,
dominando saberes tradicionais, remédios, linguagens, conversavam diretamente
com suas comunidades. Mulheres capazes de discernir sobre o mal da desagregação
coletiva.
Nos
estudos sobre a colonização das Américas, Silvia Federici nos dá mais
uma face do capitalismo/patriarcado: o racismo. Tanto contra as populações
indígenas quanto contra os africanos trazidos para sustentar o trabalho nas
terras invadidas, os métodos de câmaras de tortura, genocídio e inferiorização
das mulheres foram amplamente utilizados. Ferramentas para um objetivo
unificado, preparando um sistema baseado no lucro e na transformação de seres
autônomos em força de trabalho alienada. Para a concretização do objetivo, igrejas,
cientistas, filósofos, artistas, literatos, humanistas se uniram. É farto o
material que não só justifica a misoginia e o racismo, como os “enriquece”.
Assim como em determinadas épocas, tudo que acende alguma luz quanto à
injustiça social é taxado imediatamente de “comunismo”, também na época da caça
às bruxas, qualquer reunião de duas ou mais mulheres era logo taxada de “sabá”.
Qualquer mulher independente, fora da regra imposta, era uma serva do diabo e o
preço ia de ser marcada a ferro a ter que andar de mordaça na rua, de ter o
nariz mutilado a tomar açoites públicos, de ser afogada a ser queimada viva.
Métodos que seriam usados com os negros africanos nas colônias.
Muitas
estudiosas feministas nos dizem que capitalismo e patriarcado são
indissociáveis, e que derrubar um exige derrubar o outro. A caça às bruxas
mostra que sim. Os homens não só foram coniventes, como se beneficiaram da
destruição da autonomia feminina. Não todos, logo se arvoram. Sim, mas as
exceções só provam a regra. No início do século XVI na Europa, ou nas colônias
espanholas e portuguesas, o mercantilismo preparava o terreno. Limpava o
terreno com sangue. O capitalismo/patriarcado/racismo precisava criar uma nova
divisão sexual do trabalho e alienar as mulheres quanto à importância de seu
papel reprodutivo – não só biológico, mas o de manutenção da mão-de-obra, com
os cuidados de limpeza, saúde, planejamento doméstico. Que isso fosse um dom,
um fato da natureza, e não um projeto. Não era possível destruir as
solidariedades locais sem destruir as mulheres, as lavradoras, as parteiras
(com seus conhecimentos sobre reprodução), as curandeiras, as pedreiras, as
artesãs, as anciãs sem incutir nelas o medo dos castigos corporais ou da morte,
por qualquer sussurro.
“A
CAÇA ÀS BRUXAS E A RACIONALIZAÇÃO CAPITALISTA DA SEXUALIDADE
A
caça às bruxas não resultou em novas capacidades sexuais nem em prazeres
sublimados para as mulheres. Foi, pelo contrário, o primeiro passo de um longo
caminho ao “sexo limpo entre lençóis limpos” e à transformação da atividade
sexual feminina em um trabalho a serviço dos homens e da procriação. Neste
processo foi fundamental a proibição, por serem antissociais e demoníacas, de
todas as formas não produtivas, não procriativas da sexualidade feminina.
A
repulsa que a sexualidade não procriativa estava começando a inspirar é bem
evidenciada pelo mito da velha bruxa voando na sua vassoura, que, assim como os
animais em que ela também montava (cabras, éguas, cachorros), era a projeção de
um pênis estendido, símbolo da luxúria desenfreada. Este imaginário retrata uma
nova disciplina sexual que negava à “velha feia”, que já não era fértil, o
direito a uma vida sexual. Na criação desse estereótipo, os demonólogos se
ajustavam à sensibilidade moral de sua época, tal como revelam as palavras de
dois contemporâneos da caça às bruxas:
Acaso
há algo mais odioso que ver uma velha lasciva? O que pode ser mais absurdo? E,
entretanto, é tão comum(...). É pior nas mulheres que nos homens (...). Ela,
enquanto velha megera e bruxa, não pode ver nem ouvir, não é mais que uma
carcaça, ela uiva e deve ter um garanhão. (Robert Burton)
É
ainda mais divertido ver mulheres velhas, que quase já não se sustentam em pé,
pelo peso dos anos, e que parecem cadáveres que ressuscitaram, saírem por aí
dizendo que “a vida é boa”, ainda excitadas, procurando por um parceiro...
sempre espalhando maquiagem no rosto e depilando os pelos pubianos, ainda
exibem seus peitos moles e murchos e tentam provocar, com trêmulos cochichos,
apetites lânguidos, enquanto bebem, dançam em meio a garotas e escrevem cartas
de amor. (Erasmo de Rotterdam)”
***
Calibã
e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva
Silvia
Federici
Trad.
Coletivo Sycorax
Ed.
Elefante
2017
Que riqueza esse livro, Adriane!
ResponderExcluirAinda lerei.