“Eu
gasto muito
é
com passagem”
(Nívea
Sabino, versos iniciais de Lírica de uma favelada,)
Por Adriane Garcia
O
poema permite se dizer e se desdizer. Nívea Sabino, a poeta dos slams,
que usa a palavra falada e escrita como arma para a luta e ferramenta para o
encontro, escreve: “O inventor do lápis/ é bem mais meu amigo/ que o
primeiro humano/ que testou a fala/ e dificultou o meu grito// Meu berro é no
verso/ sou toda escrito”. Ela escreve, mas berra, e das duas formas realiza
com potência sua poesia, que é toda contra o silenciamento daqueles que a
sociedade torna mais vulneráveis. Nívea não só leva seu corpo e voz a
serviço da poesia – e do humano – como registra que a escrita é um fator de
transformação pessoal, “modificou-se o olhar/ viu a si como antes não vira”,
que o olhar se aguça para os fatos (flagrar a finitude na cena do “vô”
na cadeira de balanço, flagrar a violência policial (“quem pratica
homicídio/é o Estado”) contra as pessoas negras como continuidade do
processo de escravidão.
Sua
poesia escancara a discriminação social, racial, de gênero, mas também fala da
busca de um sentido existencial: o paradoxo da previsibilidade e da imprevisibilidade
da vida, inexorável nas suas consequências, “Feto homem/ feto feito/ feito
louco/ de repente”. É poesia que pensa a finitude por meio daquilo que está
ao alcance das mãos, em um exercício de olhar de poeta: extrair da observação
de uma fruta, de uma mexerica, uma reflexão sobre a morte e um cheiro de algo
que sentimos, mas não está mais. Nos poemas mais intimistas, Nívea Sabino
revela o gesto ensimesmado, interiorano, calado; silêncio necessário para
compreender a importância das relações afetivas, principalmente dos amigos (“amigo
é família/ que cresceu/ noutro lar”) para aplacar a solidão. O riso surge
como símbolo aparente do encontro, da felicidade, ainda que momentânea, que só
pode se dar com a outra/o outro. No poema “Roda d’água ou moinho”, é
possível perceber como a pessoa-lírica desvendou um mecanismo, o das repetições,
o dos nossos erros recorrentes: “A primeira vez que ouvi moinho/ ladainha,/ mira
sem direção// Segunda, não/ já aprendi a lição”, assim como percebeu que
cada pessoa é única ou que o mundo, com seu machismo, racismo, homofobia, miséria
e necropolítica está em um movimento de ruínas.
Interiorana
também traz muitos poemas de amor. Neles, a pessoa-lírica ri de si mesma, com um
certo humor sobre os desencontros amorosos. Fala da timidez de se declarar, do
erotismo, das decepções, das expectativas frustradas, como no poema “O tesão
e a graça”, em que um só pode abandonar o outro, pois falam línguas
completamente diferentes. Em Interiorana, o amor só se torna pleno no
corpo e é visto como algo tão longínquo de se realizar como a distância que,
aparentemente, nos separa das estrelas; o amor é um desejo a se cumprir, mas
que pode levar a muitos equívocos, como o de mendigar amor, pagar qualquer
preço pelo que pareça ser amor, migalhas de um olhar. Nessa constatação, um
poema dá conta da maturidade:
“Legítimo
Só
por
só
fico
só
comigo.”
A
poesia falada, aquela que “não vive presa na livraria” certamente trouxe
para o livro muitas de suas características. Um tom de conclamação em alguns
poemas, um ritmo que pede a recitação em outros, uma pessoa-lírica que fala
diretamente à leitora/leitor, uma preocupação de denúncia, de fazer acordar. Ao
mesmo tempo, Nívea Sabino demonstra uma preocupação estética com a
palavra escrita, o que se manifesta nos seus muitos jogos silábicos/semânticos
ou na forma visual em que a poeta habita a página, como no poema “Amor e
casal”, em que o descompasso amoroso leva os versos a dançarem na página,
de forma que não poderei reproduzir aqui, “vai um/ pra cá// outro/ pra lá”.
Um outro encontro muito interessante entre forma e conteúdo é o poema “Abreviando”:
Abreviando
Quero
ser
pra
quem
me
serve
No
mais
serei
breve.
É
interessante notar em Interiorana o olhar de uma poeta que possui a
experiência de morar no interior de Minas, mas um interior como Nova Lima que, próximo
da capital, cria um trânsito perceptível na sua poesia. Há tanto o poema que se
ressente da falta do mar (mineiros sendo mineiros na sua saudade ancestral),
como o poema que celebra Belo Horizonte como um lugar lotado de bares. Há tanto
o silêncio observador da vida interiorana quanto o barulho dos saraus, dos slams,
dos megafones em riste gritando que querem outras cidades, denunciando também o
ativismo de sofá e a covardia dos omissos, que ao não deter o mal, participam
dele: “Nenhum/ ao meu redor/ impediu o metrô/ de seguir viagem// havia um
corpo/ negro/ estendido no trilho (...)”. Interiorana traz a
experiência do mato, do cerrado, dos ritos africanos, das casas com quintal,
dos pés na terra, das mãos no barro, das crianças que subiam em árvores e
colhiam frutas, um afeto pelas pessoas da cidade natal; traz também o terror da
mineração, ceifando saúde e vidas.
Nívea
Sabino constrói poemas cheios de ritmo, comandados por uma
musicalidade que usa de aliterações em versos muito bonitos como “moveu-se o
mar/ sem derramar” ou “feito cão/ farejo mudo/ imundo mundo/ me faz
fadiga”, assonâncias, rimas externas e internas, mas dando a cada poema um
tratamento próprio, sem se prender a uma fórmula apenas.
Rogério
Coelho, poeta e articulador do Coletivoz, em seu
prefácio à primeira edição de Interiorana, não chama o livro de Nívea
Sabino de livro, mas de “livre”. Àquelas e àqueles a quem foi
proibida a subjetividade e seu registro toda a história cultural construída é
pura resistência, e creio mesmo que quando escrevem um livro escrevem um “livre”.
Se, historicamente, uma mulher escrever representava (representa) uma espécie
de transgressão – punida, inúmeras vezes – para a mulher negra representava (representa)
uma afronta. Nívea Sabino, em “Na saga das Evaristo”, é
imperativa:
“beba na fonte
erga
a fronte
Negra:
afronte!”
Dizem
que a poesia pode ser muito perigosa, tanto que poetas não são bem-vindos em ditaduras
(e o que é a República de Platão – lugar em que cada um tem seu papel
pré-definido e poetas são expulsos – se não uma ditadura?). Em sociedades
antigas, a poesia era sabida de cor (coração), era dita/cantada a céu aberto,
para muitas pessoas. Não havia a concorrência da TV, dos jornais, das rádios,
das redes sociais... Era, como o teatro, arte apoiada na oralidade, no poder do
encontro físico, e o encontro físico sempre pode potencializar as reações. O
poeta e crítico Carlos Felipe Moisés, em seu livro “Poesia &
Utopia, sobre a função social da poesia e do poeta” destacou o caráter
antipedagógico da poesia, já que ela é aquilo que faz ver algo como se o
víssemos pela primeira vez, nisso residindo o seu potencial antipedagógico,
pois, visto, o objeto tem que ser desconstruído, “desensinado”, para
poder ser visto novamente, mas como se nunca antes. Neste sentido é que a poesia
é intrinsecamente rebelde e traz seu potencial revolucionário. Carlos Felipe
Moisés ainda nos conta o processo que levou os poetas do encontro com
muitos, no mundo público, olho no olho, para a solidão da mansarda, do mundo individual,
presos à página e ao silêncio da vida privada, modificando seu impacto político
até chegar ao ponto em que a própria linguagem de alguns parece não querer mais
se comunicar, reduzida, quando muito, a falar com um grupo de meia dúzia de
iniciados.
Hoje,
a poesia que sai das ruas e vai para os livros ou que sai dos livros e vai para
a rua aproxima-se novamente de uma origem, de um cantador. Slamers e rappers
desensinando o que aprendemos sobre nós ou o que ensinamos sobre os outros. Nívea
Sabino, nos desensina, por exemplo, em “Lírica de favelada” a ver
uma pessoa negra, para vê-la pela primeira vez:
“E desmontar
o ódio e
a aversão à cor
que chegam primeiro
do que quem eu sou”
Quem
já frequenta ou frequentou os slams e saraus da periferia das cidades,
sabe que poetas perigosas como Nívea Sabino ainda andam por aí.
MEU TRAÇO
Falar
sobre mim
é
de uma imensidão
sem
rastro
Transito
me
acho
No
infinito
do
que me permito
do
que eu faço
Não
minto
disfarço
Caminho
neste
mundo vasto
de
encontros
de
acasos
Profundo
acaso
ou
destino
do
meu passo
no
sem lugar
para
o qual
eu
me laço
***
Interiorana
Nívea
Sabino
Poesia
2ª
edição
Edição
independente
2018
Contato
da autora: nivearp@gmail.com
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