sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Lança chamas, de Regina Azevedo

 


 

Por Adriane Garcia

 

 

Lança chamas, de Regina Azevedo, começa a nos chamar pela capa, no bonito projeto gráfico de Gabriela Araujo. É lá na página 65 que a cor roxa não nos passa desapercebida: “carregar um roxo/ na pele”. Cor de hematoma, caminhando para o lilás, um espectro que irá da dor para a alegria, fazendo desta uma arma para resistir. Integrante da coleção Biblioteca Madrinha Lua, editora Peirópolis, o livro de Regina Azevedo possui quatro partes: Capim, Mar aberto, Multidão e A poeta. Chama a atenção a pouca idade da autora – nesta data com 22 anos – e a seriedade com que trabalha sua poesia desde a adolescência. Neste sentido, faz-se muito coerente a escolha de um livro de Regina Azevedo para uma coleção cuja homenageada, a poeta Henriqueta Lisboa, via na poesia não somente um fazer artístico, mas uma profissão de fé. Regina Azevedo é também uma militante pela poesia entre jovens de sua cidade.

 

Lança chamas, sem o hífen, aproveita-se de mais sentidos. É tanto o substantivo lança-chamas quanto um imperativo, um convite. É também uma constatação sobre o sujeito que lança chamas, no caso, a poeta: “porque não se responde/ um revólver// escrevo como quem lança chamas”. Fogo implícito, esse objeto poético por excelência, que quase nunca falta nas reflexões sobre memória – pois é símbolo para o avivar das lembranças e para o esquecimento – perpassa a poesia de Lança chamas para reviver a infância, a família, os avós, os tios, o letramento e a alfabetização, para iluminar o amor – que é chama – e a política, que tantas vezes gostaríamos de destruir para construir uma outra, que nos permitisse mais que um mundo cinza. Lança chamas é também o fogo da juventude a que Regina Azevedo nos convida; convite que só poderia ser feito por um eu poético que se declara jovem, pois a juventude conserva o motor das rebeliões e a sua indignação é a nossa.

 

Com versos na maioria das vezes curtos, livres, usando o mínimo de pontuação e sem as letras maiúsculas, Regina Azevedo constrói uma poesia limpa e objetiva, sem qualquer intenção de ornamento, fiel à proposta temática dos poemas. É exatamente por isso que pode nos surpreender com um verso que parece ter saído, de repente, de uma associação livre. É justamente por saber dosar as figuras de linguagem, que Regina Azevedo consegue dar “rasteiras” em quem está lendo. E é bom cair nas armadilhas que transformam por exemplo “um homem de gravata” em “um homem de bravata”. É bom ler um livro que faz a dura e necessária crítica sociopolítica, que denuncia o machismo e os males do patriarcado. E é bom que este mesmo livro contemple o que é íntimo em nós: a passagem do tempo, a beleza do cotidiano, o sexo, os nossos desejos e perdas, evocando também a vitalidade, a leveza.

 

 

brasil 2018

 

jamais esquecer

de beijar a sua boca

antes de sair de casa

porque isso aqui é brasil, 2018,

e os cidadãos de bem

arma em punho, bandeira aberta

nos querem mudos,

amordaçados

escorraçados do país

a arma da família

mira no próprio sangue

a gente nunca sabe

se vai voltar a se ver

não dá pra saber

quem será o próximo

moa, marielle,

eu ou você

no brasil de 2018,

lutar e beijar

jamais esquecer

 

 

festejo ao fogo

 

só por um segundo

sob teu peito

 

o farfalhar do outono

e o que você fazia

em festejo ao fogo

 

a ponta dos dedos

ao relento

 

traquejo singular da labareda

 

misto de calmaria e lampejo

numa dança descabelada

 

a língua pronta para o surgimento

da manhã

 

o espírito de cavalo colorido

no ato de trocar os óculos com você

e te olhar de baixo

 

o minério que dorme na pele

o desafio que doma o segundo

a ginga que derrete as ondas

 

cheiro tônico diante do espelho

 

o rugido e o anúncio

do tropeço no ritual:

 

um orgasmo estupendo

anestesia contra as bombas

de efeito moral

     

***
Lança chamas

Regina Azevedo

Poesia

Ed. Peirópolis

2021

 

Jenipará, de Graziela Brum


 


Por Adriane Garcia

 

 

 

Jenipará, romance de Graziela Brum, traz como cenário a floresta amazônica e conta a história de fundação de uma cidade fictícia, cujo nome dá título ao livro. Para o vilarejo, que mais tarde será a cidade de Jenipará, confluem habitantes expulsos de outras localidades da floresta, seja pelo desmatamento, pelo confronto direto com posseiros e políticos corruptos, pelas queimadas, pela implantação da pecuária, que destrói as economias locais, ou pela miséria. Situada à beira de um rio chamado Jarurema, até chegarmos em Jenipará, acompanharemos personagens cujas vozes compõem um retrato da dura realidade vivida pelos povos da floresta, cada vez mais acossados e violentados pelas forças do capital, o que inclui o assassinato de lideranças e comunidades inteiras.

 

De início, Graziela Brum nos apresenta Joane, a ribeirinha, empregada doméstica da casa dos Lima, grávida de nove meses em seu caminho por dentro da mata, a fim de chegar em casa. Joane leva o amor por Zé Bidela e os ensinamentos de tia Dulcineia, a parteira. Acompanhando Joane, conhecemos Zé Bidela e a história de sua família no seringal Baldaceiro, uma história de resistência e de fuga, pois as forças contrárias à floresta parecem não ter fim. É assim, entre os seringueiros de produção sustentável e tribos indígenas, entre mulheres que conservam os saberes da terra e da manutenção de suas comunidades, que a leitura de Jenipará nos revela também os grandes depósitos de máquinas e motosserras, enquanto ouvimos a rádio local tocando o carimbó e um passarinho perdido, desorientado pela fumaça ininterrupta.

 

Jenipará utiliza várias vozes narrativas, dando dinamismo à leitura. Na fumaça que queima a floresta, por vezes sentimos uma claustrofobia, sabemos que a floresta não está queimando somente de forma fictícia. São momentos de morte que a autora salva com momentos de vida. Instantes em que habilmente nos sintoniza com a rádio Tapajós 81 FM e nos faz ouvir a deliciosa Dona Onete e encontrar poetas contemporâneas como Katia Marchese, Yara Darin, Rosana Banharoli e Wanda Monteiro. Com um equilíbrio entre a contundência realista e o lirismo que abarca mitos, peixes, pedras, árvores, comidas, hábitos, aves, Graziela Brum nos entrega um romance comovente, ao mesmo tempo em que faz denúncia política. Quando terminei a leitura, fui pesquisar sobre um dos narradores, o passarinho capitão do mato. Ouvi emocionada o seu canto cricrió... cricrió... cricrió...

 

Estranho ver o pai assim. Meu irmão Chico quis chamá-lo para pescar no rio, mas a mãe não deixou. Mandou ele pegar o prato de boia e comer quieto no canto da cozinha. Que deixasse o pai em paz. Chico começou a chorar, era muito jovem ainda, não conseguia entender o que o pai pretendia. Na verdade, nem a mãe, nem eu sabíamos o que se passava com ele. A gente imaginava que era coisa de decisão, que ele buscava resposta nos espíritos da mata. Quem sabe o pai tivesse enlouquecido, era difícil de acreditar. Ele era o líder do povoado, sabia sempre o que fazer, aconselhava a plantar no roçado, a quebrar as castanhas nas pedras para não faltar o que comer na temporada de chuvas. Sempre teve ideia. Quando a noite se aprochegou, o pai voltou para casa. Ainda calado, tomou um banho, se arrumou e depois sentou ao redor da mesa para o jantar. Comeu com fartura, enquanto a gente em silêncio esperava uma palavra dele. Então o pai nos disse:

— “É preciso a guerra, o Padre que perdoe a gente.”

 

***

 

Jenipará

Graziela Brum

Romance

Ed. Reformatório

2019