por
Adriane Garcia
Foi
com grata surpresa que li os contos de Naufrágio entre amigos (ed.
Patuá, 2016), de Eduardo Sabino. Não porque imaginava que não
fosse um livro bom, mas porque constatei que era ainda melhor. Gosto
dos livros que além de bem escritos – E Sabino é ótimo leitor –
, emocionam-me, para o riso e para o choro. Gosto ainda mais quando
um livro, realmente, faz com que eu saia do lugar, mude-me de cidade,
de tempo, de conhecidos. Adicione-se a isso frases memoráveis,
deixadas aqui e ali, como quem largasse displicentente um tesouro...
ah, então a leitura torna-se um luxo.
Assim,
estive em Nova Lima (MG) com os personagens deste autor e fui, num
jogo paulatino, entre as páginas, percebendo um naufrágio, dois,
três, tantos. O naufrágio, esse ato universal.
Sabino,
em sua ficção, dá-nos um tanto de memória, mas, escritor ingênuo
que não é, entrega-nos ele próprio sua suspeita, a de que a
lembrança seleciona, elege, destrói, omite, refaz: "o
inusitado é o rei no trono de ferro da memória".
Na
forma, o autor escolhe arejar os contos, dividindo os blocos de
parágrafos pela passagem do tempo ou da circunstância, de maneira
que a leitura fluida é privilegiada, com muita clareza, sem
malabarismos, sem ostentações, sem tentar inventar a roda. É
contemporâneo sem negar a tradição, inclusive de grandes
ficcionistas mineiros, que reconhecemos, souberam nos dar um mundo,
narrando-o com simplicidade. É o contador de histórias que
consegue, perfeitamente, oferecer-nos uma arquitetura sem que
fiquemos nos lembrando de sua engenharia. Sabino não quer se
mostrar, quer comunicar. Uma literatura para encontrar o outro,
irmanada na consciência do naufrágio coletivo.
Do
menino que é obrigado a ir à missa “Não existe nada tão ruim
para uma criança quanto a obrigação de fazer silêncio na idade do
barulho” ao avô amante de literatura “Aprendi com ele que a
dúvida é uma condição da alma livre, não um pecado”, Naufrágio
entre amigos nos apresenta um Deus que, se existe, vai, por gozo,
desfazendo as coisas, recriando-as, como se gostasse da forma
impiedosa de contar as nossas histórias, como se fosse divertido que
encontrássemos, décadas mais tarde, nosso grande amigo de infância
assassinado por homofobia.
A
leitura de Naufrágio é séria, mas encontra clarões de humor todo
o tempo, porque os narradores de Sabino sabem que é preciso rir da
própria tragédia, que é preciso trocá-la por palavras para que
faça algum sentido. Mais, que as grandes tragédias, muitas vezes,
são as pequenas: o desvalor que professores nos atribuem na escola,
a conversão do músico ao dogma cego, o nosso afastamento voluntário
e inexplicável das pessoas que amamos, a solidão da internet, a
troca das relações reais pelas relações virtuais, hoje que
pensamos que "navegar é preciso" e que "viver não é
preciso", o engodo a que somos submetidos e submetemos.
A
maioria dos contos traz personagens adolescentes – crianças e
adultos, por vezes – ensaiando a vida, dando os primeiros passos do
fracasso para entrar no navio sem volta. O bote salva-vidas: a
amizade. Não fosse isso, como no último conto, já teríamos
sucumbido em buracos que se abrem na terra, em Nova Lima, em qualquer
cidade do mundo.
“Ela
deu meia volta e ergueu a arma. O boteco silenciou-se e Afonso se
transformou. Levantou as mãos e se pôs a tremer. “O que foi que
você disse?”. Tia Nice puxou a trava do revólver e seu Jorge
soltou um grito atrás do balcão. “Não faz isso, Nice,
pelo-amor-de-deus”. Ela começou a alternar os alvos, dançando com
o revólver na mão, enquanto eu gritava para irmos embora. Voltou a
encarar Afonso. “Você não tem ideia de quantos bostas iguais a
você eu já mandei pro outro mundo. Respeito é bom e eu
gosto”.Depois mandou Afonso ajoelhar no chão do boteco e me pedir
desculpas. “Não precisa, tia”, eu disse. “Precisa sim.
Anda.”Afonso se ajoelhou e a obedeceu. A fala gaguejada, o bigode
tremendo. Depois eu apertei sua mão, Tia Nice guardou a arma e
descemos a rampa do boteco abraçados e com um silêncio profundo às
nossas costas.” (do conto Estouros, p. 27)
Leitura
recomendadíssima.
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