terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Tirza, de Arnon Grunberg - Literatura com caleidoscópio



Por Adriane Garcia

Estive, por uma semana, às voltas com Tirza, de Arnon Grunberg (editora Rádio Londres). Tadeu Sarmento já havia devorado o livro e o recomendava com veemência. Assim, furei a fila de leituras e lá fui eu. Já nas primeiras páginas, sem nenhum arrependimento.

Tirza é um romance único, uma história envolvente do início ao fim. A ideia que me veio foi a de um caleidoscópio, brinquedo feito a partir de cacos de espelhos e cujas cores aparecem de forma inesperada.  Assim é o personagem protagonista,  Jörgen Hofmeester, um homem que vai nos dando os cacos de seus espelhos para que tentemos vê-lo inteiro, mas, como num caleidoscópio, o que vemos é desordenado e, ao mesmo tempo, íntegro. Hofmeester quer desaparecer.

A construção desse personagem é uma aula de composição. Dele, tudo se suspeita, mas nada assegura certeza ao leitor. O narrador, em terceira pessoa, parece estar constantemente a meio palmo de distância de Hofmeester. Essa proximidade faz com que o leitor sinta estar na casa, no quarto, na cozinha, na mente do protagonista; dá a impressão de que lhe acompanha o ato, lembrança, momento narrado, com a veracidade não dos fatos, mas desta única versão que possui, e que é totalizante.

Pai de família, abandonado pela esposa – que saiu em busca de seu amor de juventude – tendo ficado responsável pela educação das duas filhas, Hofmeester é um homem de meia idade, de classe média, procurando manter sua vida, cheia de fracassos, sob controle. E controle talvez seja a palavra chave deste livro. Para auxiliar a si mesmo na recomposição de si, o ser fragmentário que tenta não dar vazão aos instintos, Hofmeester resolve se alojar na paternidade. Quando a filha mais velha desiste da carreira acadêmica, sonhada pelo pai, e parte para a França, para ser proprietária de uma pousada, Hofmeester fica apenas com Tirza,  a filha mais nova, essa personagem que ocupa seu pensamento como uma obsessão, como a obsessão por uma salvação única, ou mesmo como a obsessão por uma amante. Quanto mais o protagonista pratica seu autocontrole, mais o leitor se vê diante de uma desconfiança. Tirza é um romance em que sabemos, todo o tempo, e ficamos em estado de alerta: algo vai acontecer. 

A narrativa se inicia exatamente no momento em que o pai começa os preparativos para a festa de Tirza, decidida a ir conhecer a África, após a formatura do ensino médio. Para agravar a situação, a esposa que sumira reaparece como se nada tivesse acontecido. Daqui, eu não poderia mais descrever a história sem privar o leitor das surpresas deste livro. Mas saiba, é um livro que vai longe, Arnon Grunberg nos leva a nós mesmos, como raça; à lembrança de algumas ideias psicanalíticas que desvendaram tanto sobre nós. Quanto custa ao humano civilizar-se? Qual o tamanho da angústia individual para formar o todo pacífico coletivo? Quanto desse todo é possível, já que a civilização gera pessoas doentes? Que tipo de ilusão é essa chamada civilização ou que garantia oferece? O que teríamos que extirpar de todos os seres humanos para obter uma civilização sincera, que fosse mais que aparências? Não por acaso, parte dessa história irá se localizar na África, continente de origem, continente que, no senso comum, ocupa o imaginário como o local das feras, da pobreza material, do encontro do homem com o solo, com a natureza, com o deserto. 

São quatrocentas e sessenta páginas, fluindo vigorosamente. Viaje com Hofmeester. O livro tem recebido muitas leituras e elogios. Arnon Grunberg os mereceu. 

"Tirza dava festas com frequência, mas esta noite era diferente. Assim como vidas, festas podem fracassar ou ser um sucesso. Embora Tirza não tenha dito, Hofmeester sente que muito depende desta noite. Tirza, sua filha mais nova, a mais bem-sucedida. Extremamente bem-sucedida, tanto por dentro quanto por fora.
Hofmeester arregaçou as mangas da camisa. Para se proteger das manchas, ele está usando um avental que comprou certa vez como presente de Dia das Mães. Do seu ponto de vista, está bastante másculo. Não se barbeava há seis dias. Não teve tempo. Logo depois de se levantar, era tomado por pensamentos que nunca tinha tido antes, não nessa proporção: planos, lembranças das filhas quando ainda mal podiam engatinhar, ideias que de manhã cedo lhe pareciam brilhantes. Mais tarde faria a barba rapidamente. Quer se mostrar bem-apessoado e charmoso. Os convidados deverão vê-lo desta forma: um homem que não viveu em vão.
Circulará com sushis e sashimis bem-arrumados numa travessa comprada na loja japonesa especialmente para a ocasião. Com este ou aquele trocará algumas palavras e dirá casualmente: "Prove o sashimi de lula." Um pai abnegado, isso é o que será . O segredo da paternidade: abnegar-se. O amor dos pais é o sacrifício silencioso. Todo amor é um sacrifício. Ninguém vai reparar nele. Também não há nada para reparar. (...)"


Tirza
Arnon Grunberg
Tradução de Mariângela Guimarães
Ficção holandesa
2015
Editora Rádio Londres

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