Por Adriane Garcia
O
livro Olhos d’água (ed. Pallas), de Conceição
Evaristo, traz 15 contos que lhe dão uma unidade inquestionável. Os personagens
dos contos de Conceição Evaristo frequentam o mesmo mundo e mostram, dele, suas
várias e terríveis facetas.
Ler
Olhos d’água é estar em contato com
uma literatura capaz de encantar e emocionar, de levar o leitor numa viagem da
imaginação e, ao mesmo tempo, colocar seus pés na realidade daqueles que só
podem conviver com a miséria material e com a violência urbana, pois nunca
tiveram opção e jamais frequentaram a inexistente meritocracia
brasileira.
Terminada
a leitura, pensei, imediatamente, na famosa frase de Joãozinho Trinta: “quem gosta de miséria é intelectual”. A frase, certamente, é ancorada na análise dos
discursos que querem poetizar a pobreza, que querem conservar a miséria como se
ela devesse ser um patrimônio imaterial do Brasil.
Conceição
Evaristo vai na linha contrária. Escritora com profundo domínio do fazer
literário, oferece-nos cenários e situações de miserabilidade, mas não dá ou
sugere à miséria bons predicados. Nos contos de Conceição Evaristo, a miséria
destrói, corrói, diminui, amputa, põe em risco, encarcera, dizima, incrimina,
assassina, mata.
Ao
mesmo tempo, a autora não confunde a pobreza com o pobre. Seus personagens são
profundamente humanizados, complexos, lutadores nas mais duras e injustas
batalhas, com destaque especial para as mulheres, as mulheres negras, mais
especialmente para as mães, que sobrevivem quando tudo é feito para que não
sobrevivam.
Sendo
também poeta, as narrativas de Conceição Evaristo são tocadas pela poesia, há
um lirismo na composição de algumas palavras e uma empatia aguda pelo outro, enquanto
seu texto é firme e contundente.
Em
Olhos D’água, conto que dá nome ao
livro, a filha, após anos em outro estado, não consegue se lembrar da cor dos
olhos da mãe. Na tentativa de forçar essa memória, o leitor conhece os detalhes
da infância da protagonista. Em Ana Davenga, Conceição nos prende na
narrativa não linear; assim, queremos saber, junto com Ana Davenga, o que
aconteceu com seu homem. Em Duzu-Querença,
a fome é o motor das fantasias, característica recorrente também em Olhos d’água. Em Maria, a vida difícil e tão explorada de uma empregada doméstica é
dada a conhecer com uma síntese incrível, tudo numa fatal viagem de ônibus. Em Quantos filhos Natalina teve, um conto
corajoso sobre a maternidade e a sua negação. Em Beijo na face, a violência doméstica, a vida em cárcere de uma
mulher casada, pois em completa vigilância. Em Luamanda, o direito da mulher aos amores, ao amor livre de etarismo
e gênero. Em O Cooper de Cida, a
mulher e a pressa, a mulher e o relógio, as demandas várias na vida de uma
mulher. Em Zaíta esqueceu de guardar os
brinquedos, a rotina surreal das comunidades em guerra pelo tráfico, as
comunidades abandonadas pelo Estado, o endereço de muitas das balas perdidas.
Em Di Lixão, a capacidade enorme de
Conceição Evaristo de nos fazer ver aquilo com o qual, infelizmente,
acostumamo-nos, a ponto de deixarmos de perceber: que todo mendigo, morador de
rua, indigente foi criança um dia. Em Lumbiá,
o trabalho de crianças, dois meninos, vendedores ambulantes de amendoim,
chiclete e flores e o encantamento de Lumbiá pelas luzes de Natal, que não são
para ele. Em Os amores de Kimbá, o
desgosto por estar no meio da miséria, em um lugar visivelmente miserável, a
consciência da finitude, agravada pela pobreza e uma reflexão sobre pertencimento
e identidade. Em Ei, Ardoca, uma cena
que surpreende o leitor, pela desumanização efetuada sobre aquele que precisava
de ajuda. Em A gente combinamos de não
morrer, o pacto, entre os amigos, de ficar vivo e a grave verdade do
genocídio da juventude negra brasileira: “Deve
haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel”.
Em Ayoluwa, a alegria do nosso povo,
Conceição Evaristo nos oferece uma conto mítico, onde clama pela alegria e a
esperança, sabida a força do povo negro.
Olhos d’água
é um livro que precisa ser lido, não somente porque retrata a nação na qual foi
escrito, por alguém que conhece um lado imenso do Brasil, mas porque é
literatura cheia de apuro, capaz de chegar à “cabeça-coração”.
Impossível
fechar Olhos d’água e não pensar nas
injustiças sociais, na força das pessoas pobres, especialmente na força do povo
que foi e é estigmatizado por ter pele negra, que habita e constrói, todo os
dias, esse país.
O
mais brilhante de Conceição Evaristo é conseguir deixar claro que a miséria é
uma tragédia e mostrar a grandeza dos miseráveis, sem que para isso tenha que recorrer
a qualquer proselitismo.
A
escravidão deixou uma dívida imensa. Dívida que nunca se começou a pagar. A despeito
disso, o pobre vence. E vencer, percebe-se em Olhos d’água, é, por ora, conseguir viver mais um dia.
“Ficamos plenos de esperança, mas não cegos
diante de todas as nossas dificuldades. Sabíamos que tínhamos várias questões a
enfrentar. A maior era a nossa dificuldade interior de acreditar novamente no
valor da vida... Mas sempre inventamos a nossa sobrevivência. Entre nós, ainda
estava a experiente Omolara, a que havia nascido no tempo certo. Parteira que
repetia com sucesso a história de seu próprio nascimento, Omolara havia se
recusado a se deixar morrer.” (p. 114).
***
Olhos d'água
Conceição Evaristo
Contos
Ed. Pallas
2016
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