terça-feira, 24 de abril de 2018

Humana, demasiado humana, de Luzilá Gonçalves Ferreira





Por Adriane Garcia

Humana, demasiado humana, de Luzilá Gonçalves Ferreira (ed. Rocco, 2000) é uma biografia sobre a escritora, psicanalista e pensadora russa Lou Andreas-Salomé.

Com linguagem fluida, clara e competente, Luzilá Gonçalves Ferreira nos leva a uma viagem em que nos sentimos de perto, acompanhando Lou, enquanto passeamos na Rússia, na Alemanha e na França das últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX.

O livro, amparado por ampla pesquisa, tanto da obra ficcional e poética de Lou quanto de sua extensa correspondência e a de seus amigos, ainda nos prepara as deliciosas surpresas de nos encontrarmos com Friedrich Nietzsche, Paul Rée, Malwida von Meysenbug, Rainer Maria Rilke e Sigmund Freud.

Mulher absolutamente à frente de seu tempo, Lou Andreas-Salomé foi tida por seus contemporâneos como um gênio, tendo despertado a paixão de muitos com os quais conviveu. Sua vida foi a prática daquilo que ela defendeu: a liberdade das mulheres, inclusive de ir e vir, o direito à igualdade, o questionamento dos lugares definidos para o feminino como o casamento e a maternidade. Rompendo com preconceitos e tabus, Lou foi um testemunho da capacidade das mulheres de se sobressaírem na vida intelectual e obter respeito pela inquestionável qualidade de seu trabalho.

Luzilá Gonçalves Ferreira consegue, em Humana, demasiada humana, como sugere o recorte para o título, apresentar-nos tanto a pensadora quanto a mulher Lou, com suas escolhas, contradições e enorme desejo pela vida. Uma biografia cheia de luz, como o olhar de Lou Salomé.


Em carta datada de 4 de maio de 1927, dia de aniversário do mestre, por exemplo, Lou fala do verão que se anuncia, precoce e de como age o tempo sobre o seu corpo – ela tem sessenta e seis anos – e o que daí resulta. O trecho da carta em que aborda este assunto vale uma transcrição, bem como a resposta que lhe fez Freud:

Hoje temos o nosso primeiro dia brilhante de verão. Até aqui, o tempo conservou o habitual e irritante comportamento da primavera, que é tradicional na Alemanha: servir algo agradável, que então é tomado de volta outra vez – algo como costumava acontecer na infância, quando se guardava para “mais tarde” a maioria das coisas na mesa em que os presentes de aniversário eram dispostos. Hoje estou esticando meus velhos ossos ao sol e meu marido está fazendo o mesmo. Isto nos levou a discutir o fato de que a velhice realmente tem uns “aspectos ensolarados”, pouco perceptíveis em outras épocas da vida. Nesse ponto, realmente, vou tão longe que me torno francamente curiosa quanto ao que ainda permanece desembaraçado para mim na assombrosa meada da vida e quanto a que surpresas entrelaçadas nesta meada ainda devem apresentar-se diante de mim. Mas admito sem reservas a natureza quase idiotamente infantil desta atitude. Ainda assim, ela continua a rir zombeteiramente de toda a minha sabedoria superior, apresentando-se todas as manhãs logo que abro os olhos e antes que eu seja completamente uma compos mentis, e conferindo a todo o dia que se segue alguma coisa desta jubilosa idiotice.

A resposta de Freud a esta carta é curta, afetuosa, mas bem antes pessimista. No dia 11 de maio ele assim responde à sua “querida e indômita amiga”:

Li sua carta de aniversário com a mesma sensação que se tem, sentado ao lado do fogo, no inverno, aquecendo-se em seu calor. Como é maravilhoso – um marido e uma mulher, o primeiro dez anos mais velho, e a última dez anos mais moça do que eu, e eles ainda gostam do sol. Mas, para mim, a idade ranzinza chegou – um estado de total desilusão, cuja esterilidade é comparável a uma paisagem lunar, uma idade de gelo interior. Talvez o fogo central ainda não esteja extinto, porém, e a esterilidade afete apenas as camadas periféricas e, se houver tempo, uma nova erupção possa ocorrer (…).
Sinto saber menos de você agora. Que novas prendas a vida traz consigo? Em grande parte, coisas negativas, perdas, também de pessoas, de quem algum dia possuímos uma parte.
Meus calorosos agradecimentos e lembranças a vocês dois, você e seu velho companheiro, de Seu Freud.”

***
Humana, demasiado humana
Luzilá Gonçalves Ferreira
Biografia
Rocco
2000


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