Por Adriane Garcia
Humana, demasiado
humana, de Luzilá Gonçalves Ferreira (ed. Rocco, 2000) é uma
biografia sobre a escritora, psicanalista e pensadora russa Lou
Andreas-Salomé.
Com linguagem
fluida, clara e competente, Luzilá Gonçalves Ferreira nos leva a
uma viagem em que nos sentimos de perto, acompanhando Lou, enquanto
passeamos na Rússia, na Alemanha e na França das últimas décadas
do século XIX e nas primeiras do século XX.
O livro, amparado
por ampla pesquisa, tanto da obra ficcional e poética de Lou quanto
de sua extensa correspondência e a de seus amigos, ainda nos prepara
as deliciosas surpresas de nos encontrarmos com Friedrich Nietzsche,
Paul Rée, Malwida von Meysenbug, Rainer Maria Rilke e Sigmund Freud.
Mulher absolutamente
à frente de seu tempo, Lou Andreas-Salomé foi tida por seus
contemporâneos como um gênio, tendo despertado a paixão de muitos
com os quais conviveu. Sua vida foi a prática daquilo que ela
defendeu: a liberdade das mulheres, inclusive de ir e vir, o direito
à igualdade, o questionamento dos lugares definidos para o feminino
como o casamento e a maternidade. Rompendo com preconceitos e tabus,
Lou foi um testemunho da capacidade das mulheres de se sobressaírem
na vida intelectual e obter respeito pela inquestionável qualidade
de seu trabalho.
Luzilá Gonçalves
Ferreira consegue, em Humana, demasiada humana, como sugere o recorte
para o título, apresentar-nos tanto a pensadora quanto a mulher Lou,
com suas escolhas, contradições e enorme desejo pela vida. Uma
biografia cheia de luz, como o olhar de Lou Salomé.
“Em carta
datada de 4 de maio de 1927, dia de aniversário do mestre, por
exemplo, Lou fala do verão que se anuncia, precoce e de como age o
tempo sobre o seu corpo – ela tem sessenta e seis anos – e o que
daí resulta. O trecho da carta em que aborda este assunto vale uma
transcrição, bem como a resposta que lhe fez Freud:
Hoje temos o
nosso primeiro dia brilhante de verão. Até aqui, o tempo conservou
o habitual e irritante comportamento da primavera, que é tradicional
na Alemanha: servir algo agradável, que então é tomado de volta
outra vez – algo como costumava acontecer na infância, quando se
guardava para “mais tarde” a maioria das coisas na mesa em que os
presentes de aniversário eram dispostos. Hoje estou esticando meus
velhos ossos ao sol e meu marido está fazendo o mesmo. Isto nos
levou a discutir o fato de que a velhice realmente tem uns “aspectos
ensolarados”, pouco perceptíveis em outras épocas da vida. Nesse
ponto, realmente, vou tão longe que me torno francamente curiosa
quanto ao que ainda permanece desembaraçado para mim na assombrosa
meada da vida e quanto a que surpresas entrelaçadas nesta meada
ainda devem apresentar-se diante de mim. Mas admito sem reservas a
natureza quase idiotamente infantil desta atitude. Ainda assim, ela
continua a rir zombeteiramente de toda a minha sabedoria superior,
apresentando-se todas as manhãs logo que abro os olhos e antes que
eu seja completamente uma compos mentis, e conferindo a todo o dia
que se segue alguma coisa desta jubilosa idiotice.
A resposta de
Freud a esta carta é curta, afetuosa, mas bem antes pessimista. No
dia 11 de maio ele assim responde à sua “querida e indômita
amiga”:
Li sua carta de
aniversário com a mesma sensação que se tem, sentado ao lado do
fogo, no inverno, aquecendo-se em seu calor. Como é maravilhoso –
um marido e uma mulher, o primeiro dez anos mais velho, e a última
dez anos mais moça do que eu, e eles ainda gostam do sol. Mas, para
mim, a idade ranzinza chegou – um estado de total desilusão, cuja
esterilidade é comparável a uma paisagem lunar, uma idade de gelo
interior. Talvez o fogo central ainda não esteja extinto, porém, e
a esterilidade afete apenas as camadas periféricas e, se houver
tempo, uma nova erupção possa ocorrer (…).
Sinto saber menos
de você agora. Que novas prendas a vida traz consigo? Em grande
parte, coisas negativas, perdas, também de pessoas, de quem algum
dia possuímos uma parte.
Meus calorosos
agradecimentos e lembranças a vocês dois, você e seu velho
companheiro, de Seu Freud.”
***
Humana, demasiado
humana
Luzilá Gonçalves
Ferreira
Biografia
Rocco
2000
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