Por Adriane Garcia
Demorei mais que o tempo
habitual, lendo A
máquina de existir
(ed. Pedra Papel Tesoura, 2018), de Fabrício Marques. Por cerca de
três dias, eu não saía da leitura do poema Minha
humanidade e sempre
que terminava, voltava a ele novamente. É poema de não se querer
perder nada.
Minha humanidade
também dá nome à primeira parte do livro, dividido em quatro,
sendo as outras: O
manto branco de espanto,
Pólen
e Duas visitas a
Minas.
No poema Minha
Humanidade, já de
início, Fabrício Marques nos situa nos paradoxos de nossa condição
humana, aquilo que é humanidade e que, portanto, seria desejável,
“é o pior de
mim”. O poema
traz contraposições inequívocas do que somos: puro conflito, “É
tão pequenina a minha humanidade/ e é logo ali o oceano”.
Esse conflito tem por base o encontro de uma humanidade individual
com a humanidade do outro. No poema, a repetição do pronome
possessivo “minha” marca e intensifica o movimento que é todo
interior, “a
víbora interna/ que carrega consigo”.
Explorando tanto a profundidade do tema, como imagens e sonoridades,
o poeta constrói um poema grandioso, que enquanto diz e desdiz,
alcança em si movimento e transformação. A humanidade desse
eu-poético é exigente e, ao mesmo tempo, simples, quer “o
paraíso móvel e o tempo indomável”,
mas ficaria satisfeito com “um
cão e um pouco de café”.
Quando o leitor consegue se
desapegar do primeiro
poema, percebe que o livro continua instigante e povoado de versos
surpreendentes, em sentido e beleza. Em Nós,
o desocidentado, “O
sol que nasce ensina/O sol que se põe ensina”,
e a busca é pela origem, pela fagulha original que nos habita em
comum. Em A máquina
de existir (o
poema), o poeta
trabalha uma ideia central no livro, a noção de mecanismo, sendo
certa da causa de existir a sua sabida consequência: “vai
ter seu dia/ no deserto/ no vale dos ossos”.
O poema busca uma compreensão profunda sobre a vida, que é
dolorida, mas também pode ser iluminada. Em Camadas,
a palavra busca entender como as coisas funcionam, com ciência e
poesia, o que há dentro do dentro parte do mecanismo da chuva para a
explicação do amor e, novamente, tudo retorna à origem para
recomeçar. Assim, o poeta descobre tudo para, no fim, saber que tudo
principiou, e talvez não tenha descoberto nada, afinal existir é
mistério. Em Mais-valia,
a poesia, respiradouro na perversidade de um sistema baseado na
exploração e no consumo, canta a sua inutilidade, louva a sua
menos-valia em um mundo que escolhe “o
carro, a faca, a bolsa e o míssil”.
O poeta segue usando a palavra como recurso imaginativo, na
investigação de “o
que se passa dentro e fora”,
podendo transmutar-se em tantos personagens, ter tantos nomes quanto
em “Totem para o
homo zapping”,
porque é “uns e
outros a seu dispor”,
porque a poesia pode mostrar-nos nossos nascimentos sucessivos em uma
única existência. Em Uma
vida, o autor nos
conduz, com maestria, a um poema cuja última estrofe é destruidora
de tudo o que nos levava a pensar. Por fim, fecha a primeira parte do
livro com Deslimites,
um poema tecnicamente impecável, um
diálogo certeiro e
conclusivo entre o
vivente e a vida.
Na segunda parte, o
poema Parcas,
harpias traz essas
figuras em contato com a morte e profecias terríveis. As harpias,
sabemos, também são símbolo das paixões obsessivas, aguardam os
mortos cujo fio vital
foi cortado pelas parcas. Os
versos olham
tanto da terra para o céu, quanto do céu para a terra, e o que vêem
está ligado à finitude, sobretudo: “Lá
vão as parcas./ Acima as harpias”,
a humanidade se situa apenas no perigo. Em False
Start, o poeta
oferece cenas de encadeamentos, conexões, como engrenagens em pleno
funcionamento. Seria todo o movimento que observamos uma ilusão? A
manhã é que “lança
seu manto branco de espanto”
sobre si mesma, pois toda manhã é nova e imprevisível, mesmo
quando “todas as
coisas recomeçam e recomeçam e recomeçam.”
Em Gatilhos,
a reafirmação da mudança sem cessar, da consciência grave da
efemeridade; não à toa, aparece um inseto no poema, bicho de vida
tão breve. No poema Felizes,
Fabrício Marques nos apresenta a poesia como espaço de invenção e
fantasia:
“Um flamingo
– que acabei de inventar
–
ergue o pescoço e morde
a parte mais frágil
da tua pele.
Mesmo mordida
por um flamingo imaginário
eras feliz, e sabias.”
A leitura segue com Esgotados,
o lugar do cansaço na máquina de existir, o esgotamento das saídas
e das possíveis soluções. Legado
traz uma crítica política contundente, com um poema que, para além
do tema, revela um ritmo perfeito. A música do acaso reflete a
identidade desse eu-poético, que é a soma do passado, do presente,
do futuro e do convívio com as outras pessoas, nunca fácil a
construção de si próprio quando os “sapatos
confortáveis/ escondem cicatrizes”.
4 quartetos
é outro poema fabuloso que,
como peças de encaixe, faz com que os personagens das estrofes se
encontrem, pois tudo está ligado, ainda que o próprio título
sugira, propositalmente, uma separação. Em GPS,
a poesia vem nos localizar ruínas nacionais e mundiais, localizar a
direita e a esquerda. Atualíssimo,
nele,
o autor nos diz que à direita “as
principais saídas estão fechadas”
e à esquerda se pode entrar “e
encontrar tudo/ por fazer”.
Com Cave Carmen,
a homenagem aos que fazem, a solidariedade e o convite à ação:
“Repare à sua
volta:/ não é só com a palavra/ que é preciso lutar”.
A terceira parte, Pólen,
é dedicada ao amor, aos afetos do poeta e à angústia da
incomunicabilidade deste mesmo amor. Enquanto
dormes, além de
poema cheio de sensualidade, explora em palavra o corpo como
geometria. Diante da pessoa amada, o poeta revela seu maravilhamento,
que também é ternura, que também é constatação de que o que
interpretamos sobre o outro é obra nossa. Amor como esperança de
necessário alheamento quando o mundo rui: “e
úmida província: teu corpo, minha obra,// aquela mesma que com mil
chamas/ permanece alheia a um mundo em que tudo ruísse/ e ainda
assim vibrássemos em paz,/ até que despertasses, e o teu corpo todo
risse.” Em
Trocas,
um poema em que o pássaro é
signo para a viagem. O
sobrevoo é o necessário
distanciamento que possibilita,
finalmente, ver, criando
a metáfora para a despedida de um amor. Em Pólen,
o amor é
coisa tão antiga e tão nova, pois tão em uso e desuso, assim como
a letra cursiva. Logo
mais, lemos Faltou
dizer, o
poema que reflete sobre
a dificuldade de confessar o amor, quando se pensa que o amor é uma
questão de palavras, já que escrever (falar) e viver são coisas
tão distintas.
Apenas
vem em seguida e reforça, indubitavelmente, essa ideia. Com Voo,
a homenagem aos avós, ao avô, principalmente. A máquina de existir
nos traz a velhice e com ela a despedida fatal dos
que amamos. Em
Juventude,
a consciência das estações de uma vida bem cumprida e a resignação
diante do que não pode ser modificado, enquanto condição humana, o
envelhecimento e a partida.
A melhor saída, talvez seja mesmo a receita de tantos místicos e
alguns filósofos, o carpe diem, viver o agora, presentemente, tema
do poema Life long
learning. Não por
acaso, o poema que segue é Olhar
absoluto, a
contemplação da beleza de um coral de meninos azuis, suas
vozes infantis e os sons dos instrumentos de bambus
e, então, a esperança, sobre a qual fala o poema Algo,
esperança sempre intacta. Ao encerrar a terceira parte, Fabrício
Marques faz uma homenagem à Língua e sua sonoridade. Eu-leitor
ela-língua é
deliciosamente lúdico e atravessa a paisagem:
“Cobogó
Parangolé
Cobogó
Parangolé
Cobogó
Parangolé
– que foi isso,
maquinista?
– São só trilhos a
ranger no entressonho
São vagões metálicos
percorrendo a paisagem corrompida
São as primeiras folhas
que brotam, depois da chuva
É o ruflar de plumas a
erguerem-se em voo
É o murmúrio de mil
corações batendo
Uns nos outros”
A máquina de existir,
termina com dois poemas na seção Duas
visitas a Minas.
Neles, as montanhas, as nuvens, os monumentos e
a transformação dos cenários. O que seria de Congonhas se se
levantassem, um a um, seus profetas de pedra-sabão, e abandonassem a
cidade? Essa a imaginação que o poeta exercita. Fatalmente,
lembramo-nos de quando Drummond disse “Minas, não há mais”.
A máquina de existir de
Fabrício Marques, indagadora, criativa
e inquieta, produziu esta A
máquina de existir,
livro de uma poesia potente, em beleza, profundidade e forma. Um
leitor não se
esquece de que
esteve com um livro que moveu suas próprias engrenagens.
UMA NOITE
Ela voltará para casa
e eu a reconhecerei
de longe,
o plissê do vestido
se destacando
de todo o conjunto.
O sorriso aberto,
sem esconderijos,
sem farpas de amor.
Uma noite
ela voltará para casa
e se enroscará
no edredom,
pedindo café,
sonhando quieta.
Por ora,
todos a procuram
num raio de 16 quilômetros.
(p.28)
***
A máquina de existir
Poesia
Fabrício Marques
Ed. Pedra Papel Tesoura
2018
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