sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Na casamata de si, de Pedro Tostes




Casamata é uma casa de arquitetura militar, abobadada e fortificada, à prova de explosivos. Habitação de guerra, o conceito é uma chave direta para a leitura do livro Na casamata de si, do poeta Pedro Tostes.

Em uma palestra no ano de 2016, o professor Pedro Meira Monteiro, da Universidade de Princeton, investigava sobre poesia e guerra: A pergunta que resta e que pode servir de mote a uma investigação sobre poesia e guerra é: o que fazer do sujeito impotente para quem o heroísmo é um ideal distante, talvez inacessível? O herói, afinal, é aquele que possui as chaves para a solução do conflito enquanto a coletividade agoniza, incapaz de suspender a espiral de sua própria destruição”.

Lendo Na casamata de si, podemos dizer que essa pergunta é essencial. Não que Pedro Tostes nos dê a resposta, mas ele pensa sobre ela, e daí advém sua poesia. O que ele nos dá é a colocação do embate, o raio X da guerra, e isso não é pouco. O poeta não é o herói; é, ao contrário, o anti-herói, sua luta para salvar a si mesmo se revela na luta do leitor para salvar-se a si mesmo. Ele está “entre a dívida e a dúvida”. Paradoxal, o poeta é um guerrilheiro e não é o individualismo que é exaltado, mas o coletivismo:


nãohánadadeoutrolado
do muro
nãohánadadeoutrolado

não cabe aqui
a discussão do ser
ou não ser
poesia

maisummurofoicriado

de tão próximos
as distâncias
ficam maiores
nas entrelinhas

osdurosmurosdomundo

orgânica e saudável
a vida pede um recall
praia, sonhos, luares
vidro fechado no farol

praqueexistetantomuro

música no elevador:
estranhos bailam
sua nervosa
solidão

semprehámaisummuro

mas podendo ir
mais fundo
qual a ponte
pro teu mundo?

Nãohánadadeoutrolado
domuro
nãohánadadeoutrolado”


Pedro Tostes não diz de uma guerra específica, mas de uma guerra generalizada, a guerra diária, cotidiana, banalizada e a guerra nacional de nossos dias, que só não vê quem não quer: “querendo mostrar/ pra todo mundo/ o ridículo/ que ninguém vê”. É aparente o seu desencantamento do mundo, quando se destacam nos seus versos a solidão e a opressão de uma máquina fria, gerida pelo grande capital, a Besta apocalíptica.

Quem entra e corrói
no cerne das horas
o fundo do humano?
Quem manda e a
mando de quem
que se mata
de frio de fome
de bala
qualquer irmão?
Por quem
dobram os Sinos
da Sé?”

Mas voltemos à pergunta: “O que fazer do sujeito impotente para quem o heroísmo é um ideal distante, talvez inacessível?”. Há uma pista já no início do livro, na epígrafe de W. H. Auden: “Amanhã, para os/ jovens, poetas/ explodindo/ feito bombas,/ O passeio à beira/ do lago,/ o inverno/ de perfeita/ comunhão:/ Amanhã/ a corrida de ciclistas/ Pelos subúrbios/ nas tardes de verão;/ hoje porém a luta.” A casamata de Pedro Tostes é a poesia. O poema é uma reação à impotência e é com Carlos Drummond de Andrade, que Pedro Tostes mais que informar, faz-nos sentir o que habita sua casamata: “Ouço dizer que há tiroteio/ ao alcance do nosso corpo./ É a revolução? o amor?/ Não diga nada.” É com a poesia que Pedro Tostes tenta salvar-se do cansaço da condição humana, do engano, da falta de sentido, da passagem inexorável do tempo e seu fardo, do desamor e da precariedade.

Como se a casamata fosse espelhada, o poeta está dentro, mas vendo tudo o que se passa do lado de fora. Ele não faz parte do sistema, apenas no mínimo em que é obrigado, isso está longe de ser um alívio, mas é a sua resistência. As cenas evocadas nos poemas de Pedro Tostes são urbanas, as pessoas que vê são aquelas que trabalham, pegam os ônibus, os metrôs, movem as engrenagens e podem ser vistas de cima dos arranha-céus. As situações tanto internas quanto externas são premidas pelo incômodo, a casamata também pode ser o espaço que contém um prisioneiro de guerra, o corpo podendo se dar como essa prisão, a vida se confundindo com a própria pena.

O domínio de linguagem de Pedro Tostes se manifesta em todo o livro, é notável seu diálogo com a tradição, que só enriquece a poesia. Este domínio permite tanto que ele use o verso branco como o verso rimado, alternando poemas que trabalham o trágico, o político, o existencial, o melancólico, a ironia e o humor.

É interessante que, para além do diagnóstico de uma humanidade perdida, de um país arrasado, de um poeta ocupado em ganhar o pão de cada dia com tudo contra si e contra a arte, ele crie versos, em três poemas, em que um tipo especial de bomba um dia se acionará:

a chuva sempre lava
a terra e após a
enchente dentro da lama
a vida guarda suas
sementes.”

O que fazer do sujeito impotente para quem o heroísmo é um ideal distante, talvez inacessível?” Parece não haver esperança, mas a esperança, em forma de luta, sempre comparece, pois “A poesia é um libelo contra/ a verdade constituída”.



HATTORI HANZO

Um poema
duro como um homem
afiado feito um hai cai
tendo a força dos megatons

capaz de eclodir revouções
incendiando a força que escreve
com a ferocidade de um samurai

suave na doçura de cicuta
tanque flutuando em zepelim
silencioso como um morteiro”


***
Na casamata de si
Pedro Tostes
Ed. Patuá
2018



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