Casamata
é uma casa de arquitetura militar, abobadada e fortificada, à prova
de explosivos. Habitação de guerra, o conceito é uma chave direta
para a leitura do livro Na casamata de si, do poeta Pedro
Tostes.
Em
uma palestra no ano de 2016, o professor Pedro
Meira Monteiro, da Universidade de Princeton, investigava sobre
poesia e guerra: “A
pergunta que resta e que pode servir de mote a uma investigação
sobre poesia e guerra é: o que fazer do sujeito impotente para quem
o heroísmo é um ideal distante, talvez inacessível? O herói,
afinal, é aquele que possui as chaves para a solução do conflito
enquanto a coletividade agoniza, incapaz de suspender a espiral de
sua própria destruição”.
Lendo
Na casamata de si, podemos dizer que essa pergunta é
essencial. Não que Pedro Tostes nos dê a resposta, mas ele pensa
sobre ela, e daí advém sua poesia. O que ele nos dá é a colocação
do embate, o raio X da guerra, e isso não é pouco. O poeta não é
o herói; é, ao contrário, o anti-herói, sua luta para salvar a si
mesmo se revela na luta do leitor para salvar-se a si mesmo. Ele está
“entre a dívida e a dúvida”. Paradoxal, o poeta é um
guerrilheiro e não é o individualismo que é exaltado, mas o
coletivismo:
“nãohánadadeoutrolado
do
muro
nãohánadadeoutrolado
não
cabe aqui
a
discussão do ser
ou
não ser
poesia
maisummurofoicriado
de
tão próximos
as
distâncias
ficam
maiores
nas
entrelinhas
osdurosmurosdomundo
orgânica
e saudável
a
vida pede um recall
praia,
sonhos, luares
vidro
fechado no farol
praqueexistetantomuro
música
no elevador:
estranhos
bailam
sua
nervosa
solidão
semprehámaisummuro
mas
podendo ir
mais
fundo
qual
a ponte
pro
teu mundo?
Nãohánadadeoutrolado
domuro
nãohánadadeoutrolado”
Pedro
Tostes não diz de uma guerra específica, mas de uma guerra
generalizada, a guerra diária, cotidiana, banalizada e a guerra
nacional de nossos dias, que só não vê quem não quer: “querendo
mostrar/ pra todo mundo/ o ridículo/ que ninguém vê”. É
aparente o seu desencantamento do mundo, quando se destacam nos seus
versos a solidão e a opressão de uma máquina fria, gerida pelo
grande capital, a Besta apocalíptica.
“Quem
entra e corrói
no
cerne das horas
o
fundo do humano?
Quem
manda e a
mando
de quem
que
se mata
de
frio de fome
de
bala
qualquer
irmão?
Por
quem
dobram
os Sinos
da
Sé?”
Mas
voltemos à pergunta: “O que fazer do sujeito impotente
para quem o heroísmo é um ideal distante, talvez inacessível?”.
Há uma pista já no início do livro, na epígrafe de W. H. Auden:
“Amanhã, para os/ jovens, poetas/ explodindo/ feito bombas,/ O
passeio à beira/ do lago,/ o inverno/ de perfeita/ comunhão:/
Amanhã/ a corrida de ciclistas/ Pelos subúrbios/ nas tardes de
verão;/ hoje porém a luta.” A casamata de Pedro Tostes é a
poesia. O poema é uma reação à impotência e é com Carlos
Drummond de Andrade, que Pedro Tostes mais que informar, faz-nos
sentir o que habita sua casamata: “Ouço dizer que há tiroteio/
ao alcance do nosso corpo./ É a revolução? o amor?/ Não diga
nada.” É com a poesia que Pedro Tostes tenta salvar-se do
cansaço da condição humana, do engano, da falta de sentido, da
passagem inexorável do tempo e seu fardo, do desamor e da
precariedade.
Como
se a casamata fosse espelhada, o poeta está dentro, mas vendo tudo o
que se passa do lado de fora. Ele não faz parte do sistema, apenas
no mínimo em que é obrigado, isso está longe de ser um alívio,
mas é a sua resistência. As cenas evocadas nos poemas de Pedro
Tostes são urbanas, as pessoas que vê são aquelas que trabalham,
pegam os ônibus, os metrôs, movem as engrenagens e podem ser vistas
de cima dos arranha-céus. As situações tanto internas quanto
externas são premidas pelo incômodo, a casamata também pode ser o
espaço que contém um prisioneiro de guerra, o corpo podendo se dar
como essa prisão, a vida se confundindo com a própria pena.
O
domínio de linguagem de Pedro Tostes se manifesta em todo o livro, é
notável seu diálogo com a tradição, que só enriquece a poesia.
Este domínio permite tanto que ele use o verso branco como o verso
rimado, alternando poemas que trabalham o trágico, o político, o
existencial, o melancólico, a ironia e o humor.
É
interessante que, para além do diagnóstico de uma humanidade
perdida, de um país arrasado, de um poeta ocupado em ganhar o pão
de cada dia com tudo contra si e contra a arte, ele crie versos, em
três poemas, em que um tipo especial de bomba um dia se acionará:
“a
chuva sempre lava
a
terra e após a
enchente
dentro da lama
a
vida guarda suas
sementes.”
“O
que fazer do sujeito impotente para quem o heroísmo é um ideal
distante, talvez inacessível?” Parece não haver esperança,
mas a esperança, em forma de luta, sempre comparece, pois “A
poesia é um libelo contra/ a verdade constituída”.
“HATTORI
HANZO
Um
poema
duro
como um homem
afiado
feito um hai cai
tendo
a força dos megatons
capaz
de eclodir revouções
incendiando
a força que escreve
com
a ferocidade de um samurai
suave
na doçura de cicuta
tanque
flutuando em zepelim
silencioso
como um morteiro”
***
Na
casamata de si
Pedro
Tostes
Ed.
Patuá
2018
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