segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Machamba, de Gisele Mirabai






Por Adriane Garcia


Narrado em terceira pessoa, por um narrador que é voz que se mistura à própria voz da protagonista, Machamba (ed. Nova Fronteira), romance de Gisele Mirabai, prende a atenção do leitor do início ao fim. A autora sabe, com maestria, dar aos poucos os detalhes que revelam acontecimentos e motivações. É exercendo domínio sobre o ritmo da narrativa e um “jogo” com a curiosidade do leitor que Gisele Mirabai faz com que cada capítulo seja mais uma peça do quebra-cabeças que se necessita para seguir em viagem com a personagem.

Machamba é filha única de fazendeiros, tendo passado a infância e parte da adolescência na fazenda Fiandeiras, em MG. No momento em que Gisele Mirabai começa a nos contar a história, Machamba já é uma jovem adulta e mora em Londres, onde é garçonete e não se apega a nada. Apenas mantém a vida, pratica sexo sem compromisso e sem tabus, e foge do amor.

É nesta fuga do amor que Machamba empreende suas viagens pelo mundo. E é ao mesmo tempo em que Machamba viaja, que o leitor vai encontrando o passado que a motivou a desgarrar-se (aparentemente). Há um sentimento de perecibilidade permanente, a vida é instável. Até aqui, o leitor sabe que o “Elo Perdido” foi um grande trauma, e que é por causa deste trauma, ainda não revelado, que ela perdeu suas crenças estruturais e se mantém alerta, hipervigilante, com pensamentos circulares.

É por causa deste trauma, que o leitor só conhecerá ao final do livro, que Machamba sairá de Londres e irá para a Grécia, para a Turquia, Israel, Egito e Índia: “Quem sabe assim ela encontrasse o que despencou no Elo Perdido, aquilo que separou para todo o sempre o Dia do Antes do Dia do Depois.”.

É impossível não notar a linguagem utilizada neste romance como um exemplo excelente de quando a forma encontra o conteúdo. O trauma mantém Machamba na infância em Fiandeiras ainda que ela viaje o mundo (afinal, pra onde formos nos levaremos) e a linguagem que o narrador utiliza, sendo a linguagem do próprio pensamento de Machamba, além de circular e obsessivo, cria em muitos momentos analogias e associações comuns nos exercícios de linguagem infantil ou (porque a criança sabe) da poesia.

Além disso, a nomeação muito singular de alguns elementos fundamentais para a progressão da história e da compreensão do mundo interior da personagem, tornam a narrativa diferenciada quanto ao uso das palavras. Não é o vocabulário de rotina, mas o vocabulário pessoal de Machamba que comunica sua pequena odisseia.

Pequena, porque tudo é pequeno no Tempo Grande. Assim como tudo parece maior do que é, no Tempo Pequeno. Machamba, em seu processo de crescimento, opõe, de forma recorrente, o micro ao macro, as forças diárias da vida, do medo: “o Moedor de Ossos” às forças cósmicas, universais, imparciais, a importância de nossos problemas pessoais à insignificância de nossos egos diante do Todo. Tendo escolhido mais o silêncio do que o barulho, mais a mudez do que a fala, a protagonista de Gisele Mirabai ocupa-se em fazer a sua “usinagem interior”, em ouvir-se. Talvez, por isso, o livro alcance em tantas linhas verdades incômodas, mas tão reveladas, sobre nós.

Por fim, o leitor monta o “Quebra-Cabeças”: é o Tempo Grande que manda em nossas vidas. E a viagem de Machamba acaba por provar uma verdade adquirida por ela, a de que só a mudança é permanente. Como sabiam os gregos antigos, fugir do destino pode ser uma forma de encontrá-lo.


“Mohammed olha o início da tempestade. Espera que ela se levante por si só. Os ocidentais e suas esquisitices. Os turistas passam e partem com as areias, o deserto fica. Três cavalos trotam pela imensidão. Ela permanece deitada enquanto o camelo continua no seu tempo de camelo. Com as coxas fortes e a boca que mastiga, com a altura da sua antiguidade e a largura de suas narinas. A chuva de poeira se anuncia pelos céus e o camelo se ajoelha de frente para as pirâmides. Com seu colar de pompom colorido, caindo pelo chão. O camelo tem um manto vermelho sobre as corcovas, ele olha algo que é além das pirâmides, acima das tempestades, o camelo fita o infinito com a certeza de uma estabilidade acima de todas essas passagens. Aconteça o que acontecer, há algo que não muda, a permanência inevitável de uma força que a tudo rege e que fica, e o camelo sabe disso, vê algo que ela ainda não pode enxergar, mas confia.” (p. 140)

***
Machamba
Gisele Mirabai
Romance
Ed. Nova Fronteira
2017
(LIVRO FINALISTA DO PRÊMIO JABUTI 2018)

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