Por
Adriane Garcia
Narrado
em terceira pessoa, por um narrador que é voz que se mistura à própria voz da
protagonista, Machamba (ed. Nova
Fronteira), romance de Gisele Mirabai, prende a atenção do leitor do início ao
fim. A autora sabe, com maestria, dar aos poucos os detalhes que revelam
acontecimentos e motivações. É exercendo domínio sobre o ritmo da narrativa e
um “jogo” com a curiosidade do leitor que Gisele Mirabai faz com que cada
capítulo seja mais uma peça do quebra-cabeças que se necessita para seguir em
viagem com a personagem.
Machamba
é filha única de fazendeiros, tendo passado a infância e parte da adolescência
na fazenda Fiandeiras, em MG. No momento em que Gisele Mirabai começa a nos contar
a história, Machamba já é uma jovem adulta e mora em Londres, onde é garçonete
e não se apega a nada. Apenas mantém a vida, pratica sexo sem compromisso e sem
tabus, e foge do amor.
É
nesta fuga do amor que Machamba empreende suas viagens pelo mundo. E é ao mesmo
tempo em que Machamba viaja, que o leitor vai encontrando o passado que a
motivou a desgarrar-se (aparentemente). Há um sentimento de perecibilidade
permanente, a vida é instável. Até aqui, o leitor sabe que o “Elo Perdido” foi
um grande trauma, e que é por causa deste trauma, ainda não revelado, que ela
perdeu suas crenças estruturais e se mantém alerta, hipervigilante, com
pensamentos circulares.
É
por causa deste trauma, que o leitor só conhecerá ao final do livro, que
Machamba sairá de Londres e irá para a Grécia, para a Turquia, Israel, Egito e Índia:
“Quem sabe assim ela encontrasse o que despencou no Elo Perdido, aquilo que
separou para todo o sempre o Dia do Antes do Dia do Depois.”.
É
impossível não notar a linguagem utilizada neste romance como um exemplo excelente
de quando a forma encontra o conteúdo. O trauma mantém Machamba na infância em
Fiandeiras ainda que ela viaje o mundo (afinal, pra onde formos nos levaremos)
e a linguagem que o narrador utiliza, sendo a linguagem do próprio pensamento
de Machamba, além de circular e obsessivo, cria em muitos momentos analogias e
associações comuns nos exercícios de linguagem infantil ou (porque a criança
sabe) da poesia.
Além
disso, a nomeação muito singular de alguns elementos fundamentais para a progressão
da história e da compreensão do mundo interior da personagem, tornam a
narrativa diferenciada quanto ao uso das palavras. Não é o vocabulário de
rotina, mas o vocabulário pessoal de Machamba que comunica sua pequena odisseia.
Pequena,
porque tudo é pequeno no Tempo Grande. Assim como tudo parece maior do que é,
no Tempo Pequeno. Machamba, em seu processo de crescimento, opõe, de forma
recorrente, o micro ao macro, as forças diárias da vida, do medo: “o Moedor de
Ossos” às forças cósmicas, universais, imparciais, a importância de nossos
problemas pessoais à insignificância de nossos egos diante do Todo. Tendo escolhido
mais o silêncio do que o barulho, mais a mudez do que a fala, a protagonista de
Gisele Mirabai ocupa-se em fazer a sua “usinagem interior”, em ouvir-se. Talvez,
por isso, o livro alcance em tantas linhas verdades incômodas, mas tão reveladas,
sobre nós.
Por
fim, o leitor monta o “Quebra-Cabeças”: é o Tempo Grande que manda em nossas
vidas. E a viagem de Machamba acaba por provar uma verdade adquirida por ela, a
de que só a mudança é permanente. Como sabiam os gregos antigos, fugir do destino pode
ser uma forma de encontrá-lo.
“Mohammed
olha o início da tempestade. Espera que ela se levante por si só. Os ocidentais
e suas esquisitices. Os turistas passam e partem com as areias, o deserto fica.
Três cavalos trotam pela imensidão. Ela permanece deitada enquanto o camelo
continua no seu tempo de camelo. Com as coxas fortes e a boca que mastiga, com
a altura da sua antiguidade e a largura de suas narinas. A chuva de poeira se
anuncia pelos céus e o camelo se ajoelha de frente para as pirâmides. Com seu
colar de pompom colorido, caindo pelo chão. O camelo tem um manto vermelho
sobre as corcovas, ele olha algo que é além das pirâmides, acima das
tempestades, o camelo fita o infinito com a certeza de uma estabilidade acima
de todas essas passagens. Aconteça o que acontecer, há algo que não muda, a
permanência inevitável de uma força que a tudo rege e que fica, e o camelo sabe
disso, vê algo que ela ainda não pode enxergar, mas confia.” (p. 140)
***
Machamba
Gisele
Mirabai
Romance
Ed.
Nova Fronteira
2017
(LIVRO
FINALISTA DO PRÊMIO JABUTI 2018)
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