segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Forte apache, de Marcelo Montenegro




Forte apache (Cia das Letras), de Marcelo Montenegro é dividido em três partes; a primeira homônima do livro (2017) e as outras duas com poemas de seus trabalhos anteriores: Garagem lírica (2012) e Orfanato portátil (2003).

Oferecendo uma viagem sobre a produção de Marcelo Montenegro, Forte apache permite verificar que a voz do autor já vinha definida e diferenciada, que se manteve e se fortaleceu naquilo que parece centrar seu projeto poético: o olhar. Marcelo Montenegro é o poeta da cena, da imagem, dos “takes”, dos pequenos momentos que passariam despercebidos se sua sensibilidade não os flagrasse e, como alguém que seleciona as cenas, o poeta também pensa as trilhas sonoras.

Utilizando-se do humor, do contrassenso, das antíteses, das constatações inusuais, da ironia, Marcelo Montenegro retira da realidade, do fato banal, aquilo que deveríamos ter visto e não vimos, ocupados demais que estamos em viver nossos dias atropelados. Seus versos são para acordar, avisar, assustar. O que é importante? O que não é importante? No que não reparamos? Quando algo é ressignificado pode mudar de valor.

Com aquilo que, via repetição dos gestos, já nos acostumamos, a poesia de Forte apache alerta: tudo pode ser muito estranho e novo, cada ato banal que todos praticam no mundo particular. É ao dar visibilidade para esses atos que o poeta denuncia a normatização (e diluição) como estratégia do coletivo para cegar, afinal, a singularização nos torna loucos (e tão mais interessantes) diante do mundo.

Em Forte apache, a atenção se volta para o cotidiano mais comum, o que não é a nossa atuação calculada, do palco; é, antes, o que estamos fazendo nas coxias. Desse cotidiano, o poeta extrai sentido e delicadeza e o leitor percebe que há também grande ternura naquele que observa.

Uma poesia feita com a linguagem do nosso tempo, permeada pela prosa que capta o lírico, com referências do cinema, da música e da literatura, na busca dos pequenos conceitos e definições que ajudam a compreender o mundo, grifando os livros para achar as frases, grifando a vida para achar o verso.


Bruxismo

Isto podia ser outra coisa. Uma bebedeira, por
exemplo. NÃO, não uma bebedeira, mas o começo
encantador da embriaguez. Um dia bom, qualquer
motivo, a vida irrigando o corpo com nicotina.
Podia ser uma baleia encalhada na praia
do amor. Um pote de raiva esquecido no sótão.
Podia ser uma antena em estado de coma.
Ou cacos de vidro num fliperama. Um fotógrafo
desolado por não estar com sua câmera
naquele momento. Ou um menino sentado
na ponte, balançando os pés ao som de si mesmo.
Podia ser uma seleção de crônicas publicadas
em lugar nenhum. Um deus discotecando
instantes. Um hidrante aberto no agora.
Podia ser uma mulher suspendendo a barra
da calça para saltar uma poça. Aqueles insetos
que morrem após a picada. Uma adega de
ausências que o tempo elabora. Podia ser
um exame que, buscando uma coisa, diagnostica
outra. SIM, podia ser isso tudo. Uma solidão
acesa no abajur da melodia. Um macaco
se olhando na água no primeiro dia do mundo.



Buquê de presságios

De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapato.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.



Cabaré


para Paulo de Tharso (in memoriam) e Ester Laccava


E se apenas cantássemos
como dois cansaços
num “deserto sem bússola”?
E se inscrevêssemos nosso sopro
na vidraça suja do mundo?
E se parássemos
de gastar nossas fichas nesta máquina?
E se apenas fingíssemos
como dois copos tingidos
de vinho no fundo?
E se nos anunciássemos
com bocejos sinceros em reuniões de negócios?
E se apenas sangrássemos
feito fiapos de riso
que escapam do choro?
E se topássemos, entre abandonos,
com o prenúncio invisível
de um poema lindo?
Resistiríamos, desistindo?


***
Forte apache
Marcelo Montenegro
Poesia
Cia das Letras
2018









2 comentários: