Por
Adriane Garcia
Mais
que interessante, necessário, o livro A elite do atraso (ed. Leya),
de Jessé Souza, traz uma análise acurada da história brasileira,
oferecendo uma chave de entendimento que não a do patrimonialismo.
Para Jessé Souza, a teoria de Sérgio Buarque de Holanda (do
patrimonialismo e do brasileiro cordial), depois adotada pela
intelectualidade tanto de direita quanto de esquerda, não dá conta
da principal causa dos conflitos e desigualdade social no país.
Jessé centra a chave de leitura dos problemas brasileiros na
escravidão, da qual muito se fala, mas nada se reflete.
É
pela perpetuação das condições dos escravizados, com seus
mecanismos de exclusão, crueldade, e inferiorização, que se produz
a subcidadania de milhões de brasileiros. A
desigualdade social não é herança do Estado corrupto, mas da
escravidão.
Não
é o Estado corrupto o principal inimigo do povo brasileiro, como
quer que pensemos a rede Globo, trabalhando diariamente para isso,
mas a “elite do atraso”, os grandes capitalistas por trás dos
governos, de quem os “governos” se tornam meros “aviõezinhos”.
Muito maior do que a porcentagem que alguns políticos levam nas
transações venais, é o montante que a “elite do atraso” ganha
explorando ao máximo os trabalhadores, não pagando impostos justos
ao controlar os que legislam em seu favor, sonegando impostos, e
controlando seu exército predileto e atuante, por meio do controle
da grande mídia: a classe média.
É
do entendimento da escravidão e seus mecanismos de opressão que se
pode entender a classe média. Aquela que não tem o dinheiro dos
ricos, mas detém conhecimento técnico e “moralidade”. Vive
entre ter asco dos mais pobres e sentir inveja dos mais
privilegiados, ostenta sua moralidade como a “virgem no cabaré”.
Não suporta a corrupção do Estado, mas suporta tranquilamente a
corrupção do grande capital, a exploração dos mais pobres, a fome
dos vulneráveis, as condições prisionais subumanas, e mesmo contra
a corrupção, só vai às ruas se a rede Globo conclamar, somente
contra a corrupção seletiva atribuída
a um
partido específico que o grande capital deseje retirar,
para manter o Estado sob seu controle e não mudar as regras do jogo
econômico ou do sistema social.
É
interessante que Jessé Souza não analise somente como sociólogo,
mas que algumas vezes nos dê pistas psicanalíticas a respeito da
classe média. A classe média precisa do fosso que a separa dos
pobres, dos negros, dos trabalhadores simples. Sua moralidade deseja
a caridade (ela deseja se sentir boa, beneficente), mas jamais a justiça social.
Isso explica muito do que aconteceu quando, sob o governo do PT, as
empregadas domésticas adquiriram direitos trabalhistas, ou da
revolta com a implementação das cotas universitárias, quando, na
verdade, as cotas jamais tiraram as vagas de ninguém, visto que
dobrou o número de vagas nas universidades no país.
Há
ódio, ignorância e preconceito enraizados na sociedade brasileira.
A “elite do atraso” assim o quer, pois assim sempre dominou e em
jogo que se ganha, não se mexe. O país reproduz as condições da
escravidão todos os dias, e mesmo os mais instruídos caem no conto
do “patrimonialismo”, como se nosso problema fosse reproduzir na
administração do Estado os mesmos vícios da administração de
Portugal, enquanto Brasil colônia ou reinado. Mas Portugal não teve
escravidão dentro de seu território, formando
sua cultura e seus hábitos, seu modo de ver e se relacionar.
O
patrimonialismo se reveste de crítica social e mascara o que
realmente precisa ser criticado: o sistema escravagista sobre o qual
o país foi construído, assim como seu pensamento. Todo
nosso modo de vida, de constituirmos nossas famílias, de educarmos
nossos filhos é forjado na escravidão. Não fizemos as contas e as contas precisam ser feitas.
Na
tese de que o Estado brasileiro nasceu e será para sempre corrupto
porque patrimonialista, que o “jeitinho brasileiro” é algo
genético, joga-se contra o Estado e com o Estado o tempo todo. Por
exemplo, gera nosso complexo de vira-latas, dando-nos a impressão de
que os corruptos somos somente nós, brasileiros, e que nossas
estatais, então, devem ir para mãos mais honestas, estrangeiras e
particulares. Como se nossa exploração e corruptores não se dessem
por meio de particulares. Com a tese de que nosso mal reside na
corrupção tão somente do Estado, basta a rede Globo denunciar um
esquema de corrupção contra alguém que a “elite do atraso” não
queira no poder, e a classe média se coloca a postos. Por que os que
se identificam com a “casa-grande” ficariam ao lado da senzala?
A
Elite do atraso dá visibilidade àqueles que o escritor Sebastião
Nunes chama de “panderosos”. Se você já viu um panderoso, ele
não era um. Por trás dos 3 % de um político, bilhões de reais são
expropriados da classe trabalhadora. Contra essa imoralidade, quem?
Trecho do livro (p. 231 a 234):
“O
Brasil, governado pelos lacaios do sistema financeiro, precarizou sua
saúde, sua educação, sua capacidade de produção de tecnologia e
pesquisa, em suma, está comprometendo seu futuro e seu presente para
engordar uma ínfima elite do dinheiro, esta sim, verdadeiramente,
predadora e corrupta. Afinal, para seus mais dedicados estudiosos,
como a coordenadora nacional da auditoria cidadão da dívida
pública, a pesquisadora Maria Lúcia Fatorelli, a dívida pública é
a verdadeira corrupção. O esquema criminoso foi tornado sagrado
pela associação entre atravessadores financeiros, como os grandes
bancos de investimento aqui e lá fora, e seus sócios menores no
aparelho de Estado – as corporações jurídicas mais caras do
mundo que recebem uma espécie de “propina de classe” da elite do
dinheiro para defender seus interesses – e na mídia.
Para
Fatorelli, que tem participado de auditorias de dívidas públicas em
todo o mundo, o próprio início da dívida pública nos anos 1990,
sob o governo do grande amigo dos bancos que foi Fernando Henrique
Cardoso, é obscuro e existe a suspeita bem fundada de que dívidas
já prescritas tenham sido o início da bola de neve que hoje nos
tira o futuro e o presente. A taxa Selic de 45% ao ano, no governo
FHC, turbinou uma dívida de origem suspeita até torná-la impagável
como ela é hoje. Todo o orçamento público é usado para pagar
juros apenas, sem que a dívida em si seja jamais diminuída. Uma
dívida sem contrapartida, imoral, ilegal e que só engorda uma
ínfima elite do dinheiro que comprou a política, a justiça e a
mídia. Todos nós, que pagamos impostos, trabalhamos para esse
esquema criminoso e inconstitucional que se torna invisível, porque
fomos feitos de imbecis e olhamos para a corrupção dos tolos.
Imbecis somos nós todos, ainda que em medida variável. O esquema se
desdobra nos níveis estadual e municipal com a venda de ativos
públicos e da própria arrecadação, muitas vezes sem
contrapartida, diretamente aos atravessadores financeiros, como já
está acontecendo nas grandes cidades brasileiras 126.
É desse modo que o lucro desse pessoal aumenta enquanto a população
fica cada vez mais pobre.
Isso
tudo, caro leitor, sem contar os R$ 520 bilhões em paraísos
financeiros, fruto da sonegação fiscal dos milionários, em um país
em grave crise fiscal, depositados no exterior. Um dinheiro que
resolveria a fabricada crise fiscal do Estado brasileiro, que
estancaria a catástrofe do Rio de Janeiro – reduzido à miséria
pela ação lesiva da Lava Jato e da grande imprensa para poder
entregar a Petrobrás aos estrangeiros honestos – segundo estudos
do Tax Justice Network 127.
E não esqueçamos que isso acontece em um contexto onde esses ricos
já pagam muito pouco ou nada de imposto, se compararmos com os
países ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) 128.
Finalmente,
caro leitor, não nos esqueçamos de que temos a maior taxa de juros
do planeta, embutida em tudo o que compramos – quer compremos a
crédito ou não. Créditos esses que somam 15% do PIB ou R$ 1
trilhão todos os anos, segundo dados do próprio Banco Central 129.
Se separarmos a diferença entre os juros extorsivos, praticados
aqui, com a média de juros internacionais, quantas centenas de
bilhões pagamos todos os anos, sem qualquer motivo aparente senão a
ganância do saque sobre uma população indefesa, para nossos
rentistas? Certamente uma grandeza em torno de oitocentas ou
novecentas vezes superior ao montante orgulhosamente recuperado pelos
paladinos da justiça da Lava Jato, a farsa principal da corrupção
dos tolos. Não nos esqueçamos de que esse saque via juros acontece
todos os anos. Essa é a real “boca de fumo” do nosso
capitalismo, que só se separa do narcotráfico por exterioridades. A
fonte real do assalto à população, que se torna invisível posto
que toda a atenção midiática é voltada aos aviõezinhos da
política ficam com as sobras. Os 3% dos Sérgio Cabral da vida
permitem tornar invisível a corrupção e o assalto real.
Caro
leitor, você conhece alguma sociedade que tenha sido feita de
imbecil a esse ponto pela nossa corrupção dos tolos? Eu não
conheço. O início para a recuperação de nossa inteligência,
roubada por um mecanismo de distorção sistemática da realidade
pela grande mídia, tem que ser pela admissão de que fomos todos,
você e eu, feitos de imbecis. Não existe outro caminho. Não se
aprende nada na vida sem a humildade e a coragem de admitir que não
se sabia melhor e que se deixou enganar. Não existe outro caminho
para refazer a vida.
O
espantalho da criminalização da política só serve para que a
economia dispense a mediação da política e ponha seus lacaios sem
voto e que se vangloriam de sua impopularidade vendida como cartão
de visitas para a elite do atraso, como garantia da obediência cega
à elite de rapina da população como um todo. Já o espantalho da
criminalização da esquerda e do princípio da igualdade social só
serve para que a justa raiva e o ressentimento da população, que
sofre sem entender os reais motivos do sofrimento, percam sua
expressão política e racional possível. Foi assim que a mídia
irresponsável possibilitou e pavimentou o caminho para a violência
fascista do ódio cegos dos bolsonaros da vida. O ódio fomentado
todos os dias ao PT e a Lula produziu, inevitavelmente, Bolsonaro e
sua violência em estado puro, agressividade burra e covarde. Agora,
uma população pobre e à mercê de demagogos religiosos está
minando as poucas bases civilizadas que ainda restam à sociedade
brasileira. Essa dívida tem que ser cobrada da mídia que cometeu
esse crime.
Em
relação aos setores conservadores da classe média, também, sua
arregimentação pela elite a partir da cantilena do populismo, que é
a versão acadêmica do ódio aos pobres, apenas a torna agora muito
mais explorada pela elite que defende, em troca da pífia manutenção
da distância social em relação aos pobres. Que a classe média,
assim como a mídia e as corporações de Estado que se envolveram no
golpe, nunca deram a mínima para a corrupção fica empiricamente
comprovado, agora, por meio de sua passividade total, enquanto a
corrupção mostra sua face mais danosa e mais assassina. Onde estão
os “camisas amarelas”? Onde estão as panelas? A conta do ódio
aos pobres foi o empobrecimento de todos.”
notas:
126
– ver a entrevista de Maria Lúcia Fatorelli ao programa Encontro
da Escola de Contas, disponível em :
<http://www.escoladecontas.tcm.sp.gov.br/>
127
– Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/07/120722_ricos_evasao_brasil_rp>
Acesso
em ago. 2017.
128
– Disponível em:
***
A
elite do atraso
Da
escravidão à Lava Jato
Jessé
Souza
Leya
2017
Reflexão sempre necessária.
ResponderExcluirSempre, querido. Espero que mais a façam. Abraço.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito lúcido o texto. A grande mídia é uma das culpadas pelas desgraças que assolam este país. É triste!
ResponderExcluirSim. É de uma grande sujeira manter um povo escravizado na falta de informação e, pior, na informação manipulada para a exploração do povo até a sua miséria.
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