terça-feira, 4 de dezembro de 2018

A elite do atraso, da escravidão à Lava Jato, de Jessé Souza




Por Adriane Garcia



Mais que interessante, necessário, o livro A elite do atraso (ed. Leya), de Jessé Souza, traz uma análise acurada da história brasileira, oferecendo uma chave de entendimento que não a do patrimonialismo. Para Jessé Souza, a teoria de Sérgio Buarque de Holanda (do patrimonialismo e do brasileiro cordial), depois adotada pela intelectualidade tanto de direita quanto de esquerda, não dá conta da principal causa dos conflitos e desigualdade social no país. Jessé centra a chave de leitura dos problemas brasileiros na escravidão, da qual muito se fala, mas nada se reflete.

É pela perpetuação das condições dos escravizados, com seus mecanismos de exclusão, crueldade, e inferiorização, que se produz a subcidadania de milhões de brasileiros. A desigualdade social não é herança do Estado corrupto, mas da escravidão.

Não é o Estado corrupto o principal inimigo do povo brasileiro, como quer que pensemos a rede Globo, trabalhando diariamente para isso, mas a “elite do atraso”, os grandes capitalistas por trás dos governos, de quem os “governos” se tornam meros “aviõezinhos”. Muito maior do que a porcentagem que alguns políticos levam nas transações venais, é o montante que a “elite do atraso” ganha explorando ao máximo os trabalhadores, não pagando impostos justos ao controlar os que legislam em seu favor, sonegando impostos, e controlando seu exército predileto e atuante, por meio do controle da grande mídia: a classe média.

É do entendimento da escravidão e seus mecanismos de opressão que se pode entender a classe média. Aquela que não tem o dinheiro dos ricos, mas detém conhecimento técnico e “moralidade”. Vive entre ter asco dos mais pobres e sentir inveja dos mais privilegiados, ostenta sua moralidade como a “virgem no cabaré”. Não suporta a corrupção do Estado, mas suporta tranquilamente a corrupção do grande capital, a exploração dos mais pobres, a fome dos vulneráveis, as condições prisionais subumanas, e mesmo contra a corrupção, só vai às ruas se a rede Globo conclamar, somente contra a corrupção seletiva atribuída a um partido específico que o grande capital deseje retirar, para manter o Estado sob seu controle e não mudar as regras do jogo econômico ou do sistema social.

É interessante que Jessé Souza não analise somente como sociólogo, mas que algumas vezes nos dê pistas psicanalíticas a respeito da classe média. A classe média precisa do fosso que a separa dos pobres, dos negros, dos trabalhadores simples. Sua moralidade deseja a caridade (ela deseja se sentir boa, beneficente), mas jamais a justiça social. Isso explica muito do que aconteceu quando, sob o governo do PT, as empregadas domésticas adquiriram direitos trabalhistas, ou da revolta com a implementação das cotas universitárias, quando, na verdade, as cotas jamais tiraram as vagas de ninguém, visto que dobrou o número de vagas nas universidades no país.

Há ódio, ignorância e preconceito enraizados na sociedade brasileira. A “elite do atraso” assim o quer, pois assim sempre dominou e em jogo que se ganha, não se mexe. O país reproduz as condições da escravidão todos os dias, e mesmo os mais instruídos caem no conto do “patrimonialismo”, como se nosso problema fosse reproduzir na administração do Estado os mesmos vícios da administração de Portugal, enquanto Brasil colônia ou reinado. Mas Portugal não teve escravidão dentro de seu território, formando sua cultura e seus hábitos, seu modo de ver e se relacionar. O patrimonialismo se reveste de crítica social e mascara o que realmente precisa ser criticado: o sistema escravagista sobre o qual o país foi construído, assim como seu pensamento. Todo nosso modo de vida, de constituirmos nossas famílias, de educarmos nossos filhos é forjado na escravidão. Não fizemos as contas e as contas precisam ser feitas.

Na tese de que o Estado brasileiro nasceu e será para sempre corrupto porque patrimonialista, que o “jeitinho brasileiro” é algo genético, joga-se contra o Estado e com o Estado o tempo todo. Por exemplo, gera nosso complexo de vira-latas, dando-nos a impressão de que os corruptos somos somente nós, brasileiros, e que nossas estatais, então, devem ir para mãos mais honestas, estrangeiras e particulares. Como se nossa exploração e corruptores não se dessem por meio de particulares. Com a tese de que nosso mal reside na corrupção tão somente do Estado, basta a rede Globo denunciar um esquema de corrupção contra alguém que a “elite do atraso” não queira no poder, e a classe média se coloca a postos. Por que os que se identificam com a “casa-grande” ficariam ao lado da senzala?

A Elite do atraso dá visibilidade àqueles que o escritor Sebastião Nunes chama de “panderosos”. Se você já viu um panderoso, ele não era um. Por trás dos 3 % de um político, bilhões de reais são expropriados da classe trabalhadora. Contra essa imoralidade, quem?


Trecho do livro (p. 231 a 234):

O Brasil, governado pelos lacaios do sistema financeiro, precarizou sua saúde, sua educação, sua capacidade de produção de tecnologia e pesquisa, em suma, está comprometendo seu futuro e seu presente para engordar uma ínfima elite do dinheiro, esta sim, verdadeiramente, predadora e corrupta. Afinal, para seus mais dedicados estudiosos, como a coordenadora nacional da auditoria cidadão da dívida pública, a pesquisadora Maria Lúcia Fatorelli, a dívida pública é a verdadeira corrupção. O esquema criminoso foi tornado sagrado pela associação entre atravessadores financeiros, como os grandes bancos de investimento aqui e lá fora, e seus sócios menores no aparelho de Estado – as corporações jurídicas mais caras do mundo que recebem uma espécie de “propina de classe” da elite do dinheiro para defender seus interesses – e na mídia.
Para Fatorelli, que tem participado de auditorias de dívidas públicas em todo o mundo, o próprio início da dívida pública nos anos 1990, sob o governo do grande amigo dos bancos que foi Fernando Henrique Cardoso, é obscuro e existe a suspeita bem fundada de que dívidas já prescritas tenham sido o início da bola de neve que hoje nos tira o futuro e o presente. A taxa Selic de 45% ao ano, no governo FHC, turbinou uma dívida de origem suspeita até torná-la impagável como ela é hoje. Todo o orçamento público é usado para pagar juros apenas, sem que a dívida em si seja jamais diminuída. Uma dívida sem contrapartida, imoral, ilegal e que só engorda uma ínfima elite do dinheiro que comprou a política, a justiça e a mídia. Todos nós, que pagamos impostos, trabalhamos para esse esquema criminoso e inconstitucional que se torna invisível, porque fomos feitos de imbecis e olhamos para a corrupção dos tolos. Imbecis somos nós todos, ainda que em medida variável. O esquema se desdobra nos níveis estadual e municipal com a venda de ativos públicos e da própria arrecadação, muitas vezes sem contrapartida, diretamente aos atravessadores financeiros, como já está acontecendo nas grandes cidades brasileiras 126. É desse modo que o lucro desse pessoal aumenta enquanto a população fica cada vez mais pobre.
Isso tudo, caro leitor, sem contar os R$ 520 bilhões em paraísos financeiros, fruto da sonegação fiscal dos milionários, em um país em grave crise fiscal, depositados no exterior. Um dinheiro que resolveria a fabricada crise fiscal do Estado brasileiro, que estancaria a catástrofe do Rio de Janeiro – reduzido à miséria pela ação lesiva da Lava Jato e da grande imprensa para poder entregar a Petrobrás aos estrangeiros honestos – segundo estudos do Tax Justice Network 127. E não esqueçamos que isso acontece em um contexto onde esses ricos já pagam muito pouco ou nada de imposto, se compararmos com os países ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) 128.
Finalmente, caro leitor, não nos esqueçamos de que temos a maior taxa de juros do planeta, embutida em tudo o que compramos – quer compremos a crédito ou não. Créditos esses que somam 15% do PIB ou R$ 1 trilhão todos os anos, segundo dados do próprio Banco Central 129. Se separarmos a diferença entre os juros extorsivos, praticados aqui, com a média de juros internacionais, quantas centenas de bilhões pagamos todos os anos, sem qualquer motivo aparente senão a ganância do saque sobre uma população indefesa, para nossos rentistas? Certamente uma grandeza em torno de oitocentas ou novecentas vezes superior ao montante orgulhosamente recuperado pelos paladinos da justiça da Lava Jato, a farsa principal da corrupção dos tolos. Não nos esqueçamos de que esse saque via juros acontece todos os anos. Essa é a real “boca de fumo” do nosso capitalismo, que só se separa do narcotráfico por exterioridades. A fonte real do assalto à população, que se torna invisível posto que toda a atenção midiática é voltada aos aviõezinhos da política ficam com as sobras. Os 3% dos Sérgio Cabral da vida permitem tornar invisível a corrupção e o assalto real.
Caro leitor, você conhece alguma sociedade que tenha sido feita de imbecil a esse ponto pela nossa corrupção dos tolos? Eu não conheço. O início para a recuperação de nossa inteligência, roubada por um mecanismo de distorção sistemática da realidade pela grande mídia, tem que ser pela admissão de que fomos todos, você e eu, feitos de imbecis. Não existe outro caminho. Não se aprende nada na vida sem a humildade e a coragem de admitir que não se sabia melhor e que se deixou enganar. Não existe outro caminho para refazer a vida.
O espantalho da criminalização da política só serve para que a economia dispense a mediação da política e ponha seus lacaios sem voto e que se vangloriam de sua impopularidade vendida como cartão de visitas para a elite do atraso, como garantia da obediência cega à elite de rapina da população como um todo. Já o espantalho da criminalização da esquerda e do princípio da igualdade social só serve para que a justa raiva e o ressentimento da população, que sofre sem entender os reais motivos do sofrimento, percam sua expressão política e racional possível. Foi assim que a mídia irresponsável possibilitou e pavimentou o caminho para a violência fascista do ódio cegos dos bolsonaros da vida. O ódio fomentado todos os dias ao PT e a Lula produziu, inevitavelmente, Bolsonaro e sua violência em estado puro, agressividade burra e covarde. Agora, uma população pobre e à mercê de demagogos religiosos está minando as poucas bases civilizadas que ainda restam à sociedade brasileira. Essa dívida tem que ser cobrada da mídia que cometeu esse crime.
Em relação aos setores conservadores da classe média, também, sua arregimentação pela elite a partir da cantilena do populismo, que é a versão acadêmica do ódio aos pobres, apenas a torna agora muito mais explorada pela elite que defende, em troca da pífia manutenção da distância social em relação aos pobres. Que a classe média, assim como a mídia e as corporações de Estado que se envolveram no golpe, nunca deram a mínima para a corrupção fica empiricamente comprovado, agora, por meio de sua passividade total, enquanto a corrupção mostra sua face mais danosa e mais assassina. Onde estão os “camisas amarelas”? Onde estão as panelas? A conta do ódio aos pobres foi o empobrecimento de todos.”



notas:
126 – ver a entrevista de Maria Lúcia Fatorelli ao programa Encontro da Escola de Contas, disponível em : <http://www.escoladecontas.tcm.sp.gov.br/>
Acesso em ago. 2017.
128 – Disponível em:

***
A elite do atraso
Da escravidão à Lava Jato
Jessé Souza
Leya
2017



6 comentários:

  1. Sempre, querido. Espero que mais a façam. Abraço.

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  2. Muito lúcido o texto. A grande mídia é uma das culpadas pelas desgraças que assolam este país. É triste!

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    1. Sim. É de uma grande sujeira manter um povo escravizado na falta de informação e, pior, na informação manipulada para a exploração do povo até a sua miséria.

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