sábado, 29 de dezembro de 2018

O som das coisas se descolando, de Casé Lontra Marques





Por Adriane Garcia




Na capa de fundo verde, onde outros olhos podem ver azul, somente o título e o nome do autor. É já ali a primeira pista sobre essa leitura: sinestesia. O som das coisas se descolando exige escuta e, por isso, alude ao silêncio. Ao abrir o livro, o leitor será solicitado a ouvir, mas, também, seguirá por um caminho tátil, gustativo, olfativo, visual. É para aguçar os sentidos. A poesia de Casé Lontra Marques requer o corpo.

Ensina o filósofo Merleau Ponty que nós só sabemos que existimos porque somos um corpo no mundo e que esse corpo único e individual é nossa chave de entendimento, chave pessoal e intransferível, corpo vivido. O corpo do outro é algo, no máximo, familiar, mas é por meu corpo percebendo os outros corpos que o mundo se alonga e se amplia: “um prolongamento milagroso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de se relacionar com o mundo”.

Porém, antes de “saber”, no sentido intelectivo, percebemos, e a percepção é nosso primeiro contato com as coisas. Antes do pensamento elaborado há a sensibilidade, um contato primário muito rejeitado na sociedade contemporânea. Sociedade que sobrevive às custas de não ser percebida, para ser apenas consumida, para ter seus danos nos corpos validados pela ciência.

Entre o chamado mundo adulto, que despreza o encantamento pueril da criança e o mundo da criança, ainda na presença do susto, alumbramento diante das coisas (corpo para sentir), existe uma ponte chamada poesia. Não à toa, Octavio Paz escolheu dois símbolos como o princípio e o fim da linguagem humana: o abraço dos corpos e a metáfora poética: “No primeiro: união da sensação e da imagem, o fragmento apreendido como cifra da totalidade e a totalidade repartida nas carícias que transformam o corpo numa fonte de correspondências instantâneas. Na segunda: fusão do som e do sentido, núpcias do inteligível e do sensível.”

A poesia de Casé Lontra Marques, em O som das coisas se descolando, situa-se nessa ponte, onde o inteligível e o sensível se encontram. Casé Lontra Marques constrói os poemas com as imagens e os elementos dos corpos, aludindo ou fazendo referências, amiúde, aos termos da biologia e contrapondo a angústia à paz na mesma correlação que contrapõe vida orgânica à vida inorgânica: “Nada que respira perdura em paz”.
Há uma fluência de veias funcionando, uma delicadeza de arrepio de poros:

“Nunca inerte, a delicadeza
(pulsando)
se faz deque: sobretudo
quando algum grão
de coragem
chega
na garganta – e aí não para,
ainda
que tampouco
se apresse.”

As palavras são escolhidas com o cuidado de quem conhece o trajeto sensorial da poesia. Aludir ao paladar enquanto o verso trai o senso comum, ao mesmo tempo que a sonoridade, dedicadamente trabalhada, chega aos ouvidos. Concomitante, uma imagem visual feita de absurdos se nos dá, mas já não é mais absurda, e nos cai perfeitamente. Algo anterior ao que valorizamos como entendimento percebe, sente:

Em hora arredia,
arar o que mais arde:
oceano
mordido pela maçã
da face.”

A atenção é constante sobre a saliva, o sangue, o fôlego, a carne, os ossos, a precariedade e a sujeição do ser ao tempo. O desejo, no que concorda com os budistas, é uma grande aflição, a fome não dorme, “sempre insone”. O poeta de O som das coisas se descolando é atento e observador, cada reação e sentimento não lhe escapam. Seus elementos vão do micro ao macro, do grão às galáxias. Casé Lontra Marques trabalha o poema curto, com o mínimo; o que quer é mesmo esse grão que interfere, à flor da pele.

Por trás da composição de seus versos, o poeta reflete a existência, dialoga com informações de vários campos do saber, da filosofia à psicologia, chega à doença como sintoma:  a azia como um aviso de que não se está vivendo corretamente; a sabedoria ancestral de que “Conhecemos com os pulmões”, esse órgão da troca inexorável com o exterior: Ar. E, tendo percorrido, nos poemas, as reflexões que se apoiam em conhecimento intelectual é como se, paradoxalmente, afirmasse: Eu não sei se é assim, eu sinto que é assim. Do nada saber conecta-se com o Mistério; não para o alívio, mas para a plenitude. A vida aparece quase que como um organismo predador e o corpo só pode ser pensado no tempo. É contra o tempo que se apresenta a linguagem:

O tempo se debate
quando conseguimos respirar
 dentro
 de uma frase.”

O som das coisas se descolando permite várias leituras, o reino de suas significações é amplo, mas sob qualquer interpretação, os versos inquietam: “o que se traga sem trauma?”. Viver é um exercício destemido, principalmente porque só funciona se há a coragem de mexer dentro do próprio corpo e não fora dele, no corpo próprio e não no corpo do outro. Da constatação de que fazemos parte não do equilíbrio, mas da “ordem arredia do caos” e que o imperativo absoluto é viver, fecundar, o desafio da compensação: linguagem, poesia, pois a linguagem é necessária, mas a fome é fluente.

Que as frases, anonimamente;
que as frases
infeccionem – uma a uma –
sem
desfalcar a fome (aquela
mais fluente que
de fato funda).”

De tudo se descola uma palavra, como se a palavra fosse a pele das coisas:

Os objetos – assim como
os substantivos
que deles se soltam – nunca
abdicam
de desobedecer.
suas arestas
os arejam (eu que aprenda
a jamais
me apaziguar).

O que seria do corpo/ sem o espanto que o expande?”, pergunta Casé Lontra Marques. Seria a diminuição do corpo, a sua inutilização, a impossibilidade de sua plenitude – e como vive sem plenitude nossa sociedade! Os poemas de O som das coisas se descolando é um convite ao contato com esse espanto e a demonstração de que a poesia é uma maneira de acessar nossa primeira forma de estar no mundo, nosso estágio de percepção, as primeiras práticas de nosso aparato psíquico-biológico. Nossa vida não é toda refletida, nem tudo que acontece acomete nosso intelecto. É a percepção que revela o mundo pela primeira vez.

A poesia quer um corpo vivo. Um corpo vivo o suficiente para se alegrar e para sofrer, para sentir e para tentar entender, também para aceitar que nada entende. Um corpo vivo o suficiente para celebrar-se e se perceber numa espécie de maldição com consciência, em carne viva, ruína se formando no tempo e caminhando para a morte (integração?), vivo o suficiente para ouvir o som das coisas se descolando.

Tragédia veloz, trajetória voraz
– inenfaticamente:
aprender a ruir é já ressuscitar.”


***
O som das coisas se descolando
Casé Lontra Marques
Poesia
Ed. Aves de água
2017


terça-feira, 25 de dezembro de 2018

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Machamba, de Gisele Mirabai






Por Adriane Garcia


Narrado em terceira pessoa, por um narrador que é voz que se mistura à própria voz da protagonista, Machamba (ed. Nova Fronteira), romance de Gisele Mirabai, prende a atenção do leitor do início ao fim. A autora sabe, com maestria, dar aos poucos os detalhes que revelam acontecimentos e motivações. É exercendo domínio sobre o ritmo da narrativa e um “jogo” com a curiosidade do leitor que Gisele Mirabai faz com que cada capítulo seja mais uma peça do quebra-cabeças que se necessita para seguir em viagem com a personagem.

Machamba é filha única de fazendeiros, tendo passado a infância e parte da adolescência na fazenda Fiandeiras, em MG. No momento em que Gisele Mirabai começa a nos contar a história, Machamba já é uma jovem adulta e mora em Londres, onde é garçonete e não se apega a nada. Apenas mantém a vida, pratica sexo sem compromisso e sem tabus, e foge do amor.

É nesta fuga do amor que Machamba empreende suas viagens pelo mundo. E é ao mesmo tempo em que Machamba viaja, que o leitor vai encontrando o passado que a motivou a desgarrar-se (aparentemente). Há um sentimento de perecibilidade permanente, a vida é instável. Até aqui, o leitor sabe que o “Elo Perdido” foi um grande trauma, e que é por causa deste trauma, ainda não revelado, que ela perdeu suas crenças estruturais e se mantém alerta, hipervigilante, com pensamentos circulares.

É por causa deste trauma, que o leitor só conhecerá ao final do livro, que Machamba sairá de Londres e irá para a Grécia, para a Turquia, Israel, Egito e Índia: “Quem sabe assim ela encontrasse o que despencou no Elo Perdido, aquilo que separou para todo o sempre o Dia do Antes do Dia do Depois.”.

É impossível não notar a linguagem utilizada neste romance como um exemplo excelente de quando a forma encontra o conteúdo. O trauma mantém Machamba na infância em Fiandeiras ainda que ela viaje o mundo (afinal, pra onde formos nos levaremos) e a linguagem que o narrador utiliza, sendo a linguagem do próprio pensamento de Machamba, além de circular e obsessivo, cria em muitos momentos analogias e associações comuns nos exercícios de linguagem infantil ou (porque a criança sabe) da poesia.

Além disso, a nomeação muito singular de alguns elementos fundamentais para a progressão da história e da compreensão do mundo interior da personagem, tornam a narrativa diferenciada quanto ao uso das palavras. Não é o vocabulário de rotina, mas o vocabulário pessoal de Machamba que comunica sua pequena odisseia.

Pequena, porque tudo é pequeno no Tempo Grande. Assim como tudo parece maior do que é, no Tempo Pequeno. Machamba, em seu processo de crescimento, opõe, de forma recorrente, o micro ao macro, as forças diárias da vida, do medo: “o Moedor de Ossos” às forças cósmicas, universais, imparciais, a importância de nossos problemas pessoais à insignificância de nossos egos diante do Todo. Tendo escolhido mais o silêncio do que o barulho, mais a mudez do que a fala, a protagonista de Gisele Mirabai ocupa-se em fazer a sua “usinagem interior”, em ouvir-se. Talvez, por isso, o livro alcance em tantas linhas verdades incômodas, mas tão reveladas, sobre nós.

Por fim, o leitor monta o “Quebra-Cabeças”: é o Tempo Grande que manda em nossas vidas. E a viagem de Machamba acaba por provar uma verdade adquirida por ela, a de que só a mudança é permanente. Como sabiam os gregos antigos, fugir do destino pode ser uma forma de encontrá-lo.


“Mohammed olha o início da tempestade. Espera que ela se levante por si só. Os ocidentais e suas esquisitices. Os turistas passam e partem com as areias, o deserto fica. Três cavalos trotam pela imensidão. Ela permanece deitada enquanto o camelo continua no seu tempo de camelo. Com as coxas fortes e a boca que mastiga, com a altura da sua antiguidade e a largura de suas narinas. A chuva de poeira se anuncia pelos céus e o camelo se ajoelha de frente para as pirâmides. Com seu colar de pompom colorido, caindo pelo chão. O camelo tem um manto vermelho sobre as corcovas, ele olha algo que é além das pirâmides, acima das tempestades, o camelo fita o infinito com a certeza de uma estabilidade acima de todas essas passagens. Aconteça o que acontecer, há algo que não muda, a permanência inevitável de uma força que a tudo rege e que fica, e o camelo sabe disso, vê algo que ela ainda não pode enxergar, mas confia.” (p. 140)

***
Machamba
Gisele Mirabai
Romance
Ed. Nova Fronteira
2017
(LIVRO FINALISTA DO PRÊMIO JABUTI 2018)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Na casamata de si, de Pedro Tostes




Casamata é uma casa de arquitetura militar, abobadada e fortificada, à prova de explosivos. Habitação de guerra, o conceito é uma chave direta para a leitura do livro Na casamata de si, do poeta Pedro Tostes.

Em uma palestra no ano de 2016, o professor Pedro Meira Monteiro, da Universidade de Princeton, investigava sobre poesia e guerra: A pergunta que resta e que pode servir de mote a uma investigação sobre poesia e guerra é: o que fazer do sujeito impotente para quem o heroísmo é um ideal distante, talvez inacessível? O herói, afinal, é aquele que possui as chaves para a solução do conflito enquanto a coletividade agoniza, incapaz de suspender a espiral de sua própria destruição”.

Lendo Na casamata de si, podemos dizer que essa pergunta é essencial. Não que Pedro Tostes nos dê a resposta, mas ele pensa sobre ela, e daí advém sua poesia. O que ele nos dá é a colocação do embate, o raio X da guerra, e isso não é pouco. O poeta não é o herói; é, ao contrário, o anti-herói, sua luta para salvar a si mesmo se revela na luta do leitor para salvar-se a si mesmo. Ele está “entre a dívida e a dúvida”. Paradoxal, o poeta é um guerrilheiro e não é o individualismo que é exaltado, mas o coletivismo:


nãohánadadeoutrolado
do muro
nãohánadadeoutrolado

não cabe aqui
a discussão do ser
ou não ser
poesia

maisummurofoicriado

de tão próximos
as distâncias
ficam maiores
nas entrelinhas

osdurosmurosdomundo

orgânica e saudável
a vida pede um recall
praia, sonhos, luares
vidro fechado no farol

praqueexistetantomuro

música no elevador:
estranhos bailam
sua nervosa
solidão

semprehámaisummuro

mas podendo ir
mais fundo
qual a ponte
pro teu mundo?

Nãohánadadeoutrolado
domuro
nãohánadadeoutrolado”


Pedro Tostes não diz de uma guerra específica, mas de uma guerra generalizada, a guerra diária, cotidiana, banalizada e a guerra nacional de nossos dias, que só não vê quem não quer: “querendo mostrar/ pra todo mundo/ o ridículo/ que ninguém vê”. É aparente o seu desencantamento do mundo, quando se destacam nos seus versos a solidão e a opressão de uma máquina fria, gerida pelo grande capital, a Besta apocalíptica.

Quem entra e corrói
no cerne das horas
o fundo do humano?
Quem manda e a
mando de quem
que se mata
de frio de fome
de bala
qualquer irmão?
Por quem
dobram os Sinos
da Sé?”

Mas voltemos à pergunta: “O que fazer do sujeito impotente para quem o heroísmo é um ideal distante, talvez inacessível?”. Há uma pista já no início do livro, na epígrafe de W. H. Auden: “Amanhã, para os/ jovens, poetas/ explodindo/ feito bombas,/ O passeio à beira/ do lago,/ o inverno/ de perfeita/ comunhão:/ Amanhã/ a corrida de ciclistas/ Pelos subúrbios/ nas tardes de verão;/ hoje porém a luta.” A casamata de Pedro Tostes é a poesia. O poema é uma reação à impotência e é com Carlos Drummond de Andrade, que Pedro Tostes mais que informar, faz-nos sentir o que habita sua casamata: “Ouço dizer que há tiroteio/ ao alcance do nosso corpo./ É a revolução? o amor?/ Não diga nada.” É com a poesia que Pedro Tostes tenta salvar-se do cansaço da condição humana, do engano, da falta de sentido, da passagem inexorável do tempo e seu fardo, do desamor e da precariedade.

Como se a casamata fosse espelhada, o poeta está dentro, mas vendo tudo o que se passa do lado de fora. Ele não faz parte do sistema, apenas no mínimo em que é obrigado, isso está longe de ser um alívio, mas é a sua resistência. As cenas evocadas nos poemas de Pedro Tostes são urbanas, as pessoas que vê são aquelas que trabalham, pegam os ônibus, os metrôs, movem as engrenagens e podem ser vistas de cima dos arranha-céus. As situações tanto internas quanto externas são premidas pelo incômodo, a casamata também pode ser o espaço que contém um prisioneiro de guerra, o corpo podendo se dar como essa prisão, a vida se confundindo com a própria pena.

O domínio de linguagem de Pedro Tostes se manifesta em todo o livro, é notável seu diálogo com a tradição, que só enriquece a poesia. Este domínio permite tanto que ele use o verso branco como o verso rimado, alternando poemas que trabalham o trágico, o político, o existencial, o melancólico, a ironia e o humor.

É interessante que, para além do diagnóstico de uma humanidade perdida, de um país arrasado, de um poeta ocupado em ganhar o pão de cada dia com tudo contra si e contra a arte, ele crie versos, em três poemas, em que um tipo especial de bomba um dia se acionará:

a chuva sempre lava
a terra e após a
enchente dentro da lama
a vida guarda suas
sementes.”

O que fazer do sujeito impotente para quem o heroísmo é um ideal distante, talvez inacessível?” Parece não haver esperança, mas a esperança, em forma de luta, sempre comparece, pois “A poesia é um libelo contra/ a verdade constituída”.



HATTORI HANZO

Um poema
duro como um homem
afiado feito um hai cai
tendo a força dos megatons

capaz de eclodir revouções
incendiando a força que escreve
com a ferocidade de um samurai

suave na doçura de cicuta
tanque flutuando em zepelim
silencioso como um morteiro”


***
Na casamata de si
Pedro Tostes
Ed. Patuá
2018



segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Forte apache, de Marcelo Montenegro




Forte apache (Cia das Letras), de Marcelo Montenegro é dividido em três partes; a primeira homônima do livro (2017) e as outras duas com poemas de seus trabalhos anteriores: Garagem lírica (2012) e Orfanato portátil (2003).

Oferecendo uma viagem sobre a produção de Marcelo Montenegro, Forte apache permite verificar que a voz do autor já vinha definida e diferenciada, que se manteve e se fortaleceu naquilo que parece centrar seu projeto poético: o olhar. Marcelo Montenegro é o poeta da cena, da imagem, dos “takes”, dos pequenos momentos que passariam despercebidos se sua sensibilidade não os flagrasse e, como alguém que seleciona as cenas, o poeta também pensa as trilhas sonoras.

Utilizando-se do humor, do contrassenso, das antíteses, das constatações inusuais, da ironia, Marcelo Montenegro retira da realidade, do fato banal, aquilo que deveríamos ter visto e não vimos, ocupados demais que estamos em viver nossos dias atropelados. Seus versos são para acordar, avisar, assustar. O que é importante? O que não é importante? No que não reparamos? Quando algo é ressignificado pode mudar de valor.

Com aquilo que, via repetição dos gestos, já nos acostumamos, a poesia de Forte apache alerta: tudo pode ser muito estranho e novo, cada ato banal que todos praticam no mundo particular. É ao dar visibilidade para esses atos que o poeta denuncia a normatização (e diluição) como estratégia do coletivo para cegar, afinal, a singularização nos torna loucos (e tão mais interessantes) diante do mundo.

Em Forte apache, a atenção se volta para o cotidiano mais comum, o que não é a nossa atuação calculada, do palco; é, antes, o que estamos fazendo nas coxias. Desse cotidiano, o poeta extrai sentido e delicadeza e o leitor percebe que há também grande ternura naquele que observa.

Uma poesia feita com a linguagem do nosso tempo, permeada pela prosa que capta o lírico, com referências do cinema, da música e da literatura, na busca dos pequenos conceitos e definições que ajudam a compreender o mundo, grifando os livros para achar as frases, grifando a vida para achar o verso.


Bruxismo

Isto podia ser outra coisa. Uma bebedeira, por
exemplo. NÃO, não uma bebedeira, mas o começo
encantador da embriaguez. Um dia bom, qualquer
motivo, a vida irrigando o corpo com nicotina.
Podia ser uma baleia encalhada na praia
do amor. Um pote de raiva esquecido no sótão.
Podia ser uma antena em estado de coma.
Ou cacos de vidro num fliperama. Um fotógrafo
desolado por não estar com sua câmera
naquele momento. Ou um menino sentado
na ponte, balançando os pés ao som de si mesmo.
Podia ser uma seleção de crônicas publicadas
em lugar nenhum. Um deus discotecando
instantes. Um hidrante aberto no agora.
Podia ser uma mulher suspendendo a barra
da calça para saltar uma poça. Aqueles insetos
que morrem após a picada. Uma adega de
ausências que o tempo elabora. Podia ser
um exame que, buscando uma coisa, diagnostica
outra. SIM, podia ser isso tudo. Uma solidão
acesa no abajur da melodia. Um macaco
se olhando na água no primeiro dia do mundo.



Buquê de presságios

De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapato.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.



Cabaré


para Paulo de Tharso (in memoriam) e Ester Laccava


E se apenas cantássemos
como dois cansaços
num “deserto sem bússola”?
E se inscrevêssemos nosso sopro
na vidraça suja do mundo?
E se parássemos
de gastar nossas fichas nesta máquina?
E se apenas fingíssemos
como dois copos tingidos
de vinho no fundo?
E se nos anunciássemos
com bocejos sinceros em reuniões de negócios?
E se apenas sangrássemos
feito fiapos de riso
que escapam do choro?
E se topássemos, entre abandonos,
com o prenúncio invisível
de um poema lindo?
Resistiríamos, desistindo?


***
Forte apache
Marcelo Montenegro
Poesia
Cia das Letras
2018









quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Nada acontece, de Carina S. Gonçalves




Por Adriane Garcia



Livro interessante é Nada acontece (ed. Urutau), de Carina S. Gonçalves. Orgânico, seus poemas giram em torno do título da coletânea. Nada acontece capta o vazio e a solidão das vidas que esperam, das vidas que repetem, das vidas que, diante da rotina, precisam encontrar um acontecimento.

Esse acontecimento, em Nada acontece, é a própria poesia e – no caso da poesia de Carina S. Gonçalves – também a imaginação. Muitos de seus poemas poderiam ser curta-metragens e nos emocionariam pela simplicidade, assim como seus versos nos emocionam pela carga de reconhecimento da condição humana. Os grandes eventos, aqueles que nos tiram do chão, nos enlouquecem, nos fazem vibrar têm uma onda curta em nossa história. Hesíodo, em Os trabalhos e os dias descreve bem a nossa luta: “ É que os deuses mantêm escondido dos humanos o sustento./ Pois senão trabalharias fácil, e só um dia,/ e, mesmo ocioso, terias o bastante para o ano./ Logo colocarias o timão sobre a lareira,/ os trabalhos dos bois e das mulas incansáveis desapareceriam./ Mas Zeus escondeu-o, encolerizado em seu coração,/ porque o enganara Prometeu de curvo pensar./ Por isso maquinou amargos cuidados para os humanos,/ e escondeu o fogo. (...)”.

Nada acontece não diz, mas mostra o quanto estamos presos nas engrenagens e amaldiçoados pelos deuses. O ordinário é tanto que, num almoço de família, não somos mais pessoas, estamos fora do poema e o que aparece como sujeito é o objeto. O objeto pratica a ação e, depois, de tão repetitiva, somente a ação passa a existir, invisibilizando até mesmo o objeto:

Concerto para almoço ordinário
de família ordinária 4'33''

o telejornal chia
garfo tilinta no prato de porcelana
boca assopra
jarra enche o copo
suco de laranja desce pela garganta
copo vazio toca a mesa
tosse

passa o guardanapo?

faca serra o pão
faca serra o pernil
garfo tilinta o prato
suco desce pela garganta
copo metade vazio toca a mesa
saleiro chacoalha arroz cru e sal
colherinha de alumínio topa o vidro
do copo cheio de suco

pra que tanto açúcar?

cadeira arranha o chão de porcelanato
suco desce pela garganta
garfo tilinta
faca serra
cadeira arranha o chão
suco desce
copo enche
colherinha topa
cadeira arranha
tosse

arranha
desce
tilinta
serra
chacoalha
arranha
desce
enche
topa
arranha
tosse
chia

Se não é possível para um simples mortal fugir da cadeia da vida, que consiste em nascer, crescer, morrer e, neste meio, trabalhar no sistema de moer gente: “Ganharás o pão com o suor do teu rosto(Gen 3:19), Carina S. Gonçalves encontra a saída subversiva do poema. Tudo acontece se ela assim o quer, por isso trabalha com a traição ao senso comum, um humor da fatalidade que denuncia a rotina e a inversão. Se você acha que a menina de tênis e saia, ao passar pela garota de burca, julgará que está em melhores condições do que esta, está enganado, mas “de nada adiantou o encontro/ de nada/ eu sei/ eu acho”.


A matéria dos poemas de Nada acontece é o insignificante, e é bonito como a poeta consegue nos ligar ao livro, tirando-nos do ordinário ao nos lançar o ordinário na cara. Ao significar o insignificante, ressignificamos, tomamos posse de algo que passaria sem ser visto, já que a máquina em que fomos inseridos quer-nos cada vez mais banais, triviais, na vida-morte. No fim das contas, Carina desmascara o não-acontecimento, pois quando nada acontece, tudo o tempo todo está acontecendo dentro do ser que narra, esta ilha no mundo. Andar na sala, passear com as cachorras, notar uma calçada cujas folhas das árvores não estão mais lá, pegar o ônibus, notar um rasgo na calça de algodão preferida, pensar um filme, contar de um fracasso, marcar uma consulta, “acordar com ganas de comprar um boeing/ ou um transatlântico”, memorizar a fragrância de um banheiro no Japão, sonhar em ser poeta, insistir na poesia, tudo isso enquanto somos puro conflito interno: “perto de onde estou// meu desejo não está”.


A imaginação supre o não-acontecimento e a vida encontra seu alívio seja com um tiro, seja com o fim do mundo, e não se sabe, na poesia de Nada acontece, se isso é pesadelo, ou desejo.


Livro para ler e reler.






poema vira-lata


o cachorro vira-lata
é o que mais se aproxima
de mim


ele abana o rabo
nunca visto
orelhas, patas e pelos
nunca vistos


tudo é novidade
em um cão
que não tem raça


nem ultrassom pra dizer
como um vira-lata
vai ser


se grande
se bravo
se louco
se manchas na pata esquerda


acolho o bicho misturado
como um filho
o bicho independente
que nem precisa de mim
como um filho
também não precisa


como deixar
esse bicho
tão desigual
tão somente
tão sozinho
tão na rua


não deveria protegê-lo
tanto
ele precisa virar
latas
eu preciso virar
latas
eu e ele
viramos


***


Nada acontece
Carina S. Gonçalves
Poesia
ed. Urutau
2018