Por
Adriane Garcia
Torto arado, romance de Itamar Vieira
Junior, ganhador do Prêmio Leya 2018, é uma narrativa envolvente, efetuada em
várias vozes, todas elas femininas. A força do romance se confunde com a
própria força da mulher, que protagoniza o livro e o mundo descrito.
O cenário
escolhido é árido: Brasil, Chapada Diamantina, Bahia – o mundo rural, o sertão
e a seca. O tempo é de latifúndio: alguns anos após a abolição oficial da
escravatura, encostando no hoje, aqui, agora mesmo. Já no primeiro capítulo, as
duas heroínas aparecem: Bibiana e Belonísia, crianças adorando um objeto
proibido e cortante. É de corte o Torto
arado de Itamar Vieira Junior, é das vidas sob e sobre a lâmina que ele nos
contará.
A
comunidade em que a história se desenvolve é a Fazenda de Água Negra, um dos
lugares onde negros e índios sem qualquer propriedade ou trabalho iam “pedir
morada”. Em troca do lugar para ficar, deveriam trabalhar nas terras do
fazendeiro (senhor), podendo cultivar pequena horta para subsistência no tempo
que sobrasse para si. Os trabalhos para o senhor envolvem de lavoura a serviços
de construção, sendo que obediência e gratidão ficam implícitos no contrato
tácito (qualquer semelhança com sistema feudal e escravismo não é mera
coincidência). Outros produtos poderiam ser comprados do próprio armazém do
fazendeiro, a preços exorbitantes. Tal dinâmica circular, obviamente, mostra o
autor, impede qualquer mobilidade social. Uma condição interessante imposta
pelo fazendeiro, que Torto arado
frisa, é a de que os moradores estabeleçam casa de barro e jamais de alvenaria,
para que não se pudesse calcular o tempo de permanência e evitar, assim, a
posse da terra por meio de usucapião, por exemplo.
Neste
contexto, as famílias que ali se desenvolvem, trazendo seus conhecimentos e
tradições de outros lugares, e criando outros a partir da vivência na nova
terra, movimentam-se em torno de suas culturas muito particulares. No caso da
Chapada Diamantina, representados nos personagens de Itamar Vieira Junior, os
moradores exercitam e fortalecem sua identidade nos ritos do Jarê, religião de
matriz africana (bantu e nagô) que junta elementos das culturas portuguesa,
negra e indígena, mesclando santos católicos, orixás e caboclos. O líder
espiritual no Jarê incorpora os Encantados, que falam ao grupo. O Jarê mantém a comunidade unida, agrega pela
fé e pelas festas, fornece a esperança para resolver o mal pelo pedido da graça
e fortalece em seus cultos os laços com a natureza, a terra e as árvores.
As protagonistas
Bibiana e Belonísia não só encarnam a dimensão da tragédia (que envolve
miséria, sexismo, misoginia, exploração, violência) como também a dimensão da
mudança. É por Bibiana e Belonísia, trazendo a força de Donana, a avó – que
certamente trazia outra força-mulher atrás de si - que a narrativa evolui.
Outros elementos como tradição e permanência ficam bem representados no pai,
Zeca Chapéu Grande, o líder espiritual de Água Negra, um homem que apazigua os
conflitos e intermedia os problemas entre os moradores e os proprietários.
Ainda assim, é Zeca Chapéu Grande que, em um lance de grande esperteza,
reivindicará, pela primeira vez, educação formal aos filhos dos trabalhadores.
A falta
de educação formal em Água Negra é outro ponto crucial no romance. Há dois
tipos de comportamento destacados em Torto
arado: um conformado, já que o destino dos trabalhadores é dado pelo senhor;
o destino é nascer, trabalhar, morrer. Esse comportamento não é questionado até
que o primo Severo e a esposa retornem à Água Negra, agora munidos de estudo
formal e da crítica sobre a própria realidade. Ao voltarem com a palavra, ao
produzirem as palavras que mostram aos moradores sua verdadeira ancestralidade
e direito à terra (que sem o trabalho não significa nada), uma força desponta,
um segundo comportamento. Não que, antes, não houvesse consciência da
exploração, essa consciência o homem rural tem e sente todos os dias, na carne;
o que não havia era a transformação dessa consciência em ato político, o que
nos faz lembrar Darcy Ribeiro (que adoraria o livro de Itamar): “ A crise da
educação no Brasil não é uma crise, é um projeto.”
A
narrativa de Torto arado se estende
por toda a história do Brasil, para trás e para a frente do tempo de seus
personagens. Com um recorte de algumas gerações, Itamar Vieira Junior denuncia
cinco séculos de ocupação fundiária irregular. Esta ocupação, feita não pelo
direito, mas pela força, desenvolveu formas como a grilagem, quando o próprio
Estado se torna cúmplice da fraude, tendo ele mesmo se formado sobre ela, pois
não é possível que alguém tenha dúvidas verdadeiras sobre a quem pertencem as
terras ocupadas pelos índios ou pelos quilombolas. Os conflitos no campo levam
o Brasil a ser um dos países que mais mata ativistas no mundo, segundo dados da
ONU e noticiários de nossas manhãs.
O
conflito agrário envolve milícias, genocídio, assassinato, jagunços e muito
sangue derramado. Aqueles que, como no romance de Itamar Vieira Junior,
desenvolveram uma ligação com a terra, que se confunde com a própria vida, não
têm condição de se retirar dela sem se esfacelar. Este processo, muito bem estudado
e descrito noutro livro, Mundo encaixado (ed. Mazza),
de Edimilson de Almeida Pereira e Núbia Pereira Gomes, leva o homem do campo a
perder completamente a sua identidade e é uma das faces mais violentas da
injustiça social, que transfere o homem do campo para as favelas dos grandes
centros urbanos.
O romance
Torto arado contribui de várias
maneiras para a literatura brasileira e a reflexão sobre história e racismo. Ao
trazer para suas páginas o protagonismo negro – e mais: o protagonismo da
mulher negra, lidar com personagens que representam os “vencidos”, centrar o
conflito na condição primeira destes personagens: herdeiros da escravidão,
Itamar Vieira Junior fornece ao leitor uma imagética menos comum, já que nossa
formação literária poucas vezes nos ofereceu as histórias cujo protagonismo e
centralidade faziam jus ao fato de que a população negra é a maioria no país.
Ainda assim, os produtos culturais agem como se o comum fosse sair e ver gente
muito branca, masculina e burguesa nas ruas. Daí a grande importância de trazer
à tona livros como este, como os de Lima Barreto, Conceição Evaristo, Ana Maria
Gonçalves, Carolina Maria de Jesus e outras e outros escritores que tratam de
temáticas e personagens oriundos da triste e injusta herança escravagista.
Tensão e
dramaticidade acompanham todo o livro. Itamar Vieira Junior mantém os segredos
e mistérios que povoam a narrativa até o limite, de maneira que o leitor leva
seu interesse sem pausa. Sua atenção às nuances mínimas que regem as emoções
nos convívios deixa claro o quanto é observador de seus próprios personagens,
tão bem construídos que se tornam conhecidos do leitor. Ninguém esquece
Bibiana, Belonísia, Donana, Salu, Severo, Sutério, Tobias, Santa Rita
Pescadeira. Nem mesmo detalhes das mãos de Donana, parteira, “mãe de pegação”,
o leitor se esquecerá: “Eram mãos pequenas, de unhas aparadas, como deveria ser
a mão de uma parteira, dona Tonha dizia. Pequenas, capazes de entrar no ventre
de uma mulher para virar com destreza uma criança atravessada, mal encaixada,
crianças com os movimentos errados para nascer. Ela faria os partos das
trabalhadoras da fazenda até poucos dias antes de sua morte.”
Torto arado retrata com tanta
verossimilhança a comunidade de Água Negra, que a impressão do leitor é a de já
ter pisado lá. O autor não trata este lugar ou estas pessoas com idealizações.
Naquela comunidade negra, de família estendida, de laços solidários e fraternos
(pois é a solidariedade que salva o pobre), também ocorrem brigas, fofocas,
sexismo, assédio sexual, dominação mesmo entre os fracos sobre os ainda mais
fracos (supostamente), alcoolismo, violência doméstica. Se o homem negro sofre,
a mulher negra sofre triplamente. A seca, a falta de recursos e opções, a
grande mortalidade infantil, mostram o quanto estas pessoas são obrigadas a se
adaptar ao inóspito, demonstrando gigante resistência, mas uma resistência que
não deveria ser exigida de ninguém.
O sexo
surge como um chamado da reprodução, força enorme da vida que quer se perpetuar
e que, quanto pior for o ambiente, mais precisa se tornar fértil. A mulher,
mais uma vez, matriz da vida, também aparece como ordenadora do mundo, o que
fica bem explicitado no capítulo em que é descrito o barraco de Tobias: um
mundo caótico à espera de uma mulher para ordená-lo e depois ser maltratada;
uma cena que simboliza a coisificação da mulher, um objeto que é passado do pai
para o marido e que torna os casamentos um excelente negócio para os homens.
Torto arado é um livro rico,
complexo, que carrega a vantagem dos grandes romances escritos em linguagem
comunicável, simples, mas jamais simplista: pode ser lido pelo leitor comum e
pelos leitores mais experimentados, pode agradar jovens e adultos. Em primeiro
plano se está lendo uma boa e intrigante história, que é também sobre amor,
amizade e superação; em segundo, se está
vendo de outra forma o que se pensava ter visto; em terceiro plano, se está
ligando aquilo que lê a uma realidade maior, ali questionada. Ao ter um
tratamento tão sensível, há uma grande eficiência em despertar a empatia. O
livro é cheio de beleza e contundência nas imagens, emocionantes passagens,
triste e terrível, concilia bem a dureza da luta com a existência da esperança
e mostra a dignidade daqueles que trabalham a terra e sabem que essa é a sua
dignidade.
Os
expedientes do poder sofrem pequenas metamorfoses, como transformar capitães do
mato em policiais, feitores em capatazes de fazendas, para matar os
divergentes, os insurgentes, os que proliferam as ideias de justiça e, por fim,
não só prender ou matar o revolucionário, mas também manchar e matar a sua
reputação. Contra o discurso que precisa acompanhar toda violência para
legitimá-la só caberá outro discurso. É a força da oralidade que pode ajudar a
comunidade de Água Negra, aliada aos novos saberes formais. É na linguagem que
a consciência amadurece. Torto arado
parte da metáfora da mudez para falar pelos que foram silenciados.
Necessário
e imperdível.
***
Torto Arado
Itamar Vieira Junior
Romance
Editora Leya
2019
Disponível em e-book pela
Amazon
Em breve livro físico no Brasil