Fundamentos de ventilação
e apneia – de Alberto Bresciani
Por Adriane Garcia
Ponho a cabeça para fora
da noite,
mas o que vejo
ainda não é dia.
(Alberto Bresciani)
Releio Fundamentos de
ventilação e apneia (ed. Patuá), do poeta
Alberto Bresciani. Dividido em duas partes, Ventilação
espontânea e Apneia, o livro traz 76 poemas de
grande beleza, riqueza de imagens, burilamento da palavra e
profundidade.
A respiração,
nosso primeiro movimento de troca com o mundo, inicia o ciclo
inevitável de dar e receber. Recusar-se a esse exercício
é encerrar o ciclo de vida como o conhecemos, ou seja, o ciclo
respiratório. O pulmão é o órgão
vital que nos submete ao contato sutil com o mundo. Se pela pele
podemos evitar o contato indesejado, com o pulmão, a
voluntariedade de não se comunicar com o mundo exterior
significaria um suicídio, lento ou não.
Ocorre que a respiração,
o exercício de dar e receber, pode ser harmônica ou
desarmônica e seria muito fácil se aquilo que está
dentro e aquilo que está fora permitissem fluir plenamente –
estar vivo poderia significar ser feliz. Não à toa, na
medicina chinesa, o sentimento relacionado ao adoecimento do pulmão
é a tristeza. Não à toa, místicos e alguns cientistas alardeiam a prática da meditação
(cuja base é inspirar, expirar) como solução
para o reequilíbrio de nosso estar no mundo.
Ao escolher falar da respiração
como centro temático de Fundamentos de ventilação
e apneia, Alberto Bresciani, cuja poesia gira em torno da
precariedade do humano, da incomunicabilidade, da inconsciência
do sentido da vida (se é que o há) e da inadequação,
vai direto ao ponto agônico. Viver e respirar são
sinônimos para plantas e animais; animais diversos que, no ar
ou na água, o poeta traz para figurar a linguagem, para
transformar em literatura uma questão absolutamente universal.
Da apneia, depreende-se o
movimento voluntário de ficar sem ar. Para alcançar
outros territórios, o dos peixes, por exemplo. O ser humano
pode treinar a apneia, ficar momentaneamente sem respirar – passar
dos limites pode levar à morte – usando apenas o oxigênio
já capturado nos pulmões e no diafragma para frequentar
outros cenários, interromper a troca para alcançar
outra visão. A apneia de Alberto Bresciani é a
poesia. Em Habitat I, o nosso ato mais ancestral vai de
encontro à origem da vida, que os poetas não sabem (e
sabem):
Guardei sob a pele
todos os peixes, as conchas,
anêmonas, veleiros
antigos
e recuperados aos sargaços
Ninguém conheceu
os oceanos que devoravam
as moças e os rapazes
de olhos castanhos
O silêncio da maré
baixa
sabe o doce
de frutas selvagens,
um mundo híbrido,
primeiro, anfíbio
À custa de nomes
marinhos,
sobrevivo
Aprendi a respirar na água.
Porém, contraditoriamente, respirar no nossa
habitat “natural” surge como enorme esforço:
Então sobe, engole ar,
arranca ar,
aceita armas, palavras de
gente
distante, curativos no que se
foi
Sobe, sai da água, tem
asas
peixe-voador, tem forma, a
chave,
uma porta, agora pernas,
ouve,
são os verdes deuses
da água,
sente a porta, pode e vai
abrir.
A troca efetuada em um mundo
marcado pela violência e pelo medo pode levar à síndrome
de pânico, que se apresenta frequentemente sob a forma de falta
de ar. A apneia também pode se dar de forma involuntária,
durante o sono ou a vigília:
Surto
O que é essa trava
no meio da respiração?
Houve erro, desvio
do centro eletromagnético
orientador de tartarugas
homens e tubarões?
Dizem os manuais
que o surto não passa
de dez minutos
: o tempo certo
para cortar
os pulsos.
Trocar com o mundo é
muito mais complexo do que dar gás carbônico e receber
oxigênio. Toda a dinâmica da vida interior e exterior
precisa encontrar um ritmo de menor dano. Não sabemos fazê-lo.
Talvez a história humana seja a história da nossa
respiração difícil, inconsciente, inconsequente,
que torna o planeta mais e mais irrespirável. A tristeza
atinge até os lemingues, que passam a saltar dos prédios,
traindo o próprio DNA. Se Alberto Bresciani nos coloca
junto dos animais não é apenas porque quer usar de
metáforas, analogias, mas porque estamos juntos mesmo, com uma
ilusão de separação. Porque somos animais com
eles. Porque tanto em nós quanto nas girafas, nos bisões,
nos moluscos há uma ordem de viver, ainda que ali na frente
esteja o nosso predador, que quer viver também. Tanto o mundo
natural quanto a civilização (cultura) que construímos
são tomados pela violência. Saber por que trouxemos
mais sofrimento do que o existente por si torna a vida humana
indecifrável. Que tenhamos nos tornado nosso próprio
predador é asfixiante:
Porco-espinho
Acantonado pela fera
na touceira seca,
pensa o porco-espinho
– era então só
isso, noite e dia,
um passo atrás do
outro
um passo atrás do
outro,
esperando o que viesse
à frente, fugindo
do que ficou para trás.
Fonte vital, alguns minutos sem
oxigênio e acaba a vida. O poeta é aquele que dá
valor ao invisível, ao que nutre os corpos emocionais. Quanto
negamos (e negamos a nós) na nossa relação com o
mundo? Quanto da nossa tristeza, depressão, sofrimento
envenenam o ar? Se a sanidade de nossos pulmões dependesse da
sanidade de nossas trocas afetivas, talvez a alegria fosse um
antídoto; antídoto, por sinal, amplamente recomendado
pelo filósofo Spinoza, pois a alegria aumentaria a nossa
potência para a ação e o pensamento.
Na sobrecarga dos dias, entre
poemas que dão conta de nossa claustrofobia, o poeta nos diz
de uma pausa para respirar: voltar-se para dentro, para o lugar onde
ainda respirávamos na água.
Submersos
Submersos, somos leves,
com cabelos de algas
Nenhum fruto se iguala
ao que nada
Sim, morder a maçã
limpa os dentes
Mas escute um pouco
o arrepio que sobe
do fluxo cadenciado
das brânquias
No fundo
sempre fomos felizes.
***
Fundamentos de ventilação e apneia
Alberto Bresciani
Poesia
ed. Patuá
2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário