quarta-feira, 7 de agosto de 2019

O evangelho segundo Jesus Cristo - De José Saramago





Por Adriane Garcia


Depois de mais de uma década, peguei O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, para reler. Há muito que eu desejava esse reencontro e a hora não chegava. Finalmente pude experimentá-lo.

A experiência de minha primeira leitura, que foi por volta dos meus trinta anos, havia sido arrebatadora e transformadora. O livro de Saramago tanto mexeu comigo porque minhas bases de educação familiar foram cristãs, quanto me causaram o alumbramento de ver até onde a literatura poderia chegar, de como a literatura é um território livre e sem limites. Já na releitura, pude experimentar detalhes que só podemos aproveitar depois de já ter vencido a ansiedade da história em si.

A narração usa como base a mesma dos evangelhos bíblicos, porém, Saramago se utiliza de todas as omissões bíblicas – como a infância e juventude de Jesus, por exemplo –, os desaparecimentos nos textos sagrados, a falta de detalhamento dos personagens para aprofundar situações e todo um mundo psicológico que a mitologia não desenvolve. Sem dúvidas, Saramago conserva Jesus Cristo como o verdadeiro cristão – talvez o único – aquele que estava ao lado dos homens, tendo-lhes compaixão pela condição humana; e coloca Deus no papel de algoz supremo. O Pastor, nome que o próprio Lúcifer se dá, é a figura ambígua, o lado reverso da moeda sem o qual Deus não existe, mas ainda assim mais próxima dos homens, mais compassivo que Deus.

Em um cenário de há mais de dois mil anos, O evangelho segundo Jesus Cristo traz reflexões de nosso próprio tempo e mostra as raízes de uma sociedade ocidental preconceituosa, enraizada na misoginia e na xenofobia e cuja postura religiosa serve muito mais para aprisionar do que para libertar, em um cristianismo que se trai quando não prima por justiça social e que demonstra, em seus quadros, tanto de lideranças das várias vertentes religiosas cristãs, quando entre os fiéis dessas igrejas, a marca da hipocrisia.

O livro é magnífico e na segunda leitura fica ainda melhor. Deliciosas heresias que fisgam o pensamento, colocam o Deus do Antigo Testamente como um rei nu e clamam para que o homem compreenda a tragédia do obscurantismo.

Como se se movesse no interior da rodopiante coluna de ar, José entrou em casa, cerrou a porta atrás de si, e ali ficou encostado por um minuto, aguardando que os olhos se habituassem à meia penumbra. Ao lado dele, a candeia brilhava palidamente, quase sem irradiar luz, inútil. Maria, deitada de costas, estava acordada e atenta, olhava fixamente um ponto em frente, e parecia esperar. Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele já se vinha debruçando e procedia do mesmo modo com a sua própria túnica, e Maria, entretanto, abrira as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e desta maneira as deixara ficar, fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres. Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado.” (p. 26/27)

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O evangelho segundo Jesus Cristo
José Saramago
Romance
Cia das Letras


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