Por
Adriane Garcia
Depois de
mais de uma década, peguei O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago,
para reler. Há muito que eu desejava esse reencontro e a hora não chegava.
Finalmente pude experimentá-lo.
A
experiência de minha primeira leitura, que foi por volta dos meus trinta anos, havia
sido arrebatadora e transformadora. O livro de Saramago tanto mexeu comigo
porque minhas bases de educação familiar foram cristãs, quanto me causaram o
alumbramento de ver até onde a literatura poderia chegar, de como a literatura
é um território livre e sem limites. Já na releitura, pude experimentar
detalhes que só podemos aproveitar depois de já ter vencido a ansiedade da
história em si.
A narração
usa como base a mesma dos evangelhos bíblicos, porém, Saramago se utiliza de todas
as omissões bíblicas – como a infância e juventude de Jesus, por exemplo –, os desaparecimentos
nos textos sagrados, a falta de detalhamento dos personagens para aprofundar
situações e todo um mundo psicológico que a mitologia não desenvolve. Sem
dúvidas, Saramago conserva Jesus Cristo como o verdadeiro cristão – talvez o
único – aquele que estava ao lado dos homens, tendo-lhes compaixão pela
condição humana; e coloca Deus no papel de algoz supremo. O Pastor, nome que o
próprio Lúcifer se dá, é a figura ambígua, o lado reverso da moeda sem o qual
Deus não existe, mas ainda assim mais próxima dos homens, mais compassivo que
Deus.
Em um
cenário de há mais de dois mil anos, O evangelho segundo Jesus Cristo traz reflexões de nosso próprio
tempo e mostra as raízes de uma sociedade ocidental preconceituosa, enraizada
na misoginia e na xenofobia e cuja postura religiosa serve muito mais para
aprisionar do que para libertar, em um cristianismo que se trai quando não
prima por justiça social e que demonstra, em seus quadros, tanto de lideranças
das várias vertentes religiosas cristãs, quando entre os fiéis dessas igrejas,
a marca da hipocrisia.
O livro é
magnífico e na segunda leitura fica ainda melhor. Deliciosas heresias que
fisgam o pensamento, colocam o Deus do Antigo Testamente como um rei nu e
clamam para que o homem compreenda a tragédia do obscurantismo.
“Como se
se movesse no interior da rodopiante coluna de ar, José entrou em casa, cerrou
a porta atrás de si, e ali ficou encostado por um minuto, aguardando que os
olhos se habituassem à meia penumbra. Ao lado dele, a candeia brilhava
palidamente, quase sem irradiar luz, inútil. Maria, deitada de costas, estava
acordada e atenta, olhava fixamente um ponto em frente, e parecia esperar. Sem
pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou devagar o lençol que a cobria.
Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte inferior da túnica, mas só acabou
de puxá-la para cima, à altura do ventre, quando ele já se vinha debruçando e
procedia do mesmo modo com a sua própria túnica, e Maria, entretanto, abrira as
pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e desta maneira as deixara ficar,
fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que
conhece os seus deveres. Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo
aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele
do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para
isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada
de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a
fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende,
embora as tivesse criado.” (p. 26/27)
***
O evangelho segundo Jesus
Cristo
José Saramago
Romance
Cia das Letras
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