Por Adriane Garcia
Orlando,
romance escrito por Virginia Woolf, foi publicado pela primeira vez em
1928. Há muitas edições do livro no Brasil, por várias editoras, algumas
trazendo o título Orlando: uma biografia. A edição que leio é a da Saraiva,
publicada em 2011, tradução de Laura Alves, que conta com uma apresentação
da tradutora.
O
livro pode ser um romance histórico, mas há até quem o classifique nas
narrativas fantásticas. Sua principal personagem é imortal e atravessa três
séculos e meio, enquanto a leitora/o leitor viaja também pelo pano de fundo
histórico da Inglaterra até chegar ao início do século XX. O tempo e o jovem inglês se transformam, valores
ficam e valores se vão, em uma exposição de rupturas e permanências, sendo que,
o Orlando menino e campestre que conhecemos se transmutará no jovem
urbano e sedento de vida e festa, no jovem apaixonado e traído, no poeta
frustrado, transformando-se até mesmo na mulher que reflete sobre a condição
dos gêneros. Assim, começa-se a ler sobre o Orlando e termina-se lendo
sobre a Orlando.
Na
tentativa de ser poeta (que persiste pelos séculos), a personagem de Virginia
Woolf (assim como a voz narradora, a biógrafa) acaba por fazer uma reflexão
sobre a escrita e o meio literário não raro cruel, falso, bajulador, enganador,
dado a traições. Frequentando a nobreza e a aristocracia, a personagem também denuncia
(por vezes através da sátira) essa classe social vazia: “Mas, quando tentava
lembrar em que teriam consistido essa galanteria, essa cortesia, esse encanto e
esse divertimento, era levada a crer numa falha de memória, pois não conseguia
assinalar nada. Era sempre a mesma coisa. Nada restava no dia seguinte, embora
a excitação do momento fosse intensa. Assim, somos forçados a concluir que a
sociedade é uma dessas misturas que as donas de casa habilidosas servem quentes
no período natalino, cujo sabor depende da mescla e da agitação adequadas de
uma dúzia de diferentes ingredientes. Provar um a um em separado é insípido.
Retirar Lorde O., Lorde A., Lorde C. ou o sr. M., cada um deles separadamente,
não é nada. Misturados todos juntos, combinam, produzindo o mais inebriante sabor
e o mais sedutor dos aromas. Contudo, essa embriaguez e essa sedução fogem
completamente à nossa análise. Por isso, ao mesmo tempo, a sociedade é tudo e a
sociedade é nada. A sociedade é a mais poderosa mistura do mundo e a sociedade
em si não existe. Com tal monstro só os poetas e os novelistas podem lidar; com
esse tudo e esse nada suas obras atingem um volume considerável; e para eles o
deixamos, com a melhor das boas vontades.”
Orlando
é um livro cujo prazer da leitura não se faz apenas na trama surpreendente, mas
na linguagem rica que se assemelha a um rio caudaloso, habitado por muitas
criaturas e paisagens. Se o tempo se desfaz como um nada, abrindo
repentinamente novo capítulo e Orlando se vê transformado em Lady
Orlando, continua poeta, sensível, apaixonado(a), inocente, amante da
natureza, na incessante busca pelo amor, pela sinceridade e pela vida, mas jamais
os encontrando na normalidade banal e reguladora da sociedade. Suas decepções
advindas da idealização com esta mesma sociedade, com os escritores, com a
atraente Sasha, a jovem russa capaz de trair um amor puro, vai dando o
tom do que é a existência, do que é universal, independente do lugar ou do ano
em que ocorre. Toda a memória de Orlando a acompanha.
Inspirado
na vida da amante de Virginia, Vita Sackville-West, escritora
aristocrata que mantinha um casamento aberto e alguns relacionamentos amorosos
com mulheres, Orlando traça um jogo geográfico de atravessar fronteiras,
espaços, países, e também faz a travessia do próprio corpo, entrando em outra
condição corporal. A reflexão, que ultrapassa os pensamentos sobre o travestismo
(pois também o efeito das roupas, determinadas para cada sexo é objeto de
análise por Orlando), nos conta de alegrias e sofrimentos, de adequações
e inadequações que envolvem o comportamento de gênero definido por papéis que
não consideram cada sujeito. Lady Orlando sabe que não pode mais falar
alto, não pode brigar, não pode sequer receber sua própria herança, não pode
matar, não pode deixar os tornozelos à mostra. O assédio e a violência sexual a
espreitam, agora que ela usa uma saia.
A
voz narradora é inteligente, sarcástica e fala diretamente à leitora/ao leitor.
O uso discreto do chiste, o recurso da paródia de uma biografia, o humor
brincalhão que troça do modo de narrar dos biógrafos e historiadores, nos
fazendo rir do embate entre verdade e verossimilhança e pondo em choque o
racionalismo realista, tudo isso participa da beleza deste livro. Orlando
é uma homenagem à literatura, no que ela tem de melhor e no que ela tem de
liberdade.
“Graças
a Deus que sou mulher!”, gritou, e estava quase caindo em extrema loucura —
nada é mais lamentável numa mulher ou num homem do que ter orgulho do seu sexo
— quando se deteve sobre a singular palavra que, por mais que tentemos
substituir, se insinuou no final da última frase: amor. “Amor”, disse Orlando.
Instantaneamente — tal é a sua impetuosidade — o amor tomou uma forma humana —
tal é o seu orgulho. Pois, enquanto os outros pensamentos se contentam em
permanecer abstratos, nada satisfará a este se não se revestir de carne e
sangue, mantilhas e saias, calças e jaquetas. E, como todos os amores de
Orlando tinham sido mulheres, agora, devido à censurável morosidade da
constituição humana em adaptar-se à convenção, embora ela própria fosse uma
mulher, era ainda uma mulher que ela amava; e, se a consciência de ser do mesmo
sexo tinha algum efeito sobre isso, era o de apressar e aprofundar aqueles
sentimentos que tivera como homem. Pois agora mil insinuações e mistérios que
antes pareciam obscuros se aclaravam para ela. Agora, a obscuridade — que
divide os sexos e permite a sobrevivência de inúmeras impurezas à sua sombra —
foi removida, e, se há alguma relação no que o poeta diz sobre verdade e
beleza, esta afeição ganhou em beleza o que perdeu em falsidade. Finalmente,
gritou, ela conhecia Sasha como era, e, no ardor desta descoberta e no encalço
de todos os tesouros que lhe eram agora revelados, estava tão arrebatada e
encantada como se uma bala de canhão tivesse explodido nos seus ouvidos, quando
uma voz de homem disse-lhe: “Permita-me, senhora”, e a mão de um homem ajudou-a
a levantar-se; e os dedos de um homem, com um veleiro de três mastros tatuado
no dedo do meio, apontaram o horizonte.”
***
Orlando
Virginia Woolf
Tradução de Laura Alves
Editora Saraiva
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