Por
Adriane Garcia
Uma
poesia atravessada pela fantasia e trazendo tanto da realidade da condição
feminina. É interessante pensar nessas características de A mulher submersa,
de Mar Becker, enquanto lemos suas páginas em linguagem fluida e
deslizante de versos longos, como uma mulher que mergulha em grandes
profundezas. Mas no mergulho, deslizar é um dos aspectos da ação de submergir,
os outros são tensão, pressão, perícia, cuidado. A poeta mantém o tensionamento
e sustém a beleza, utilizando a observação do cotidiano das mulheres, a atenção
detalhada da subjetividade feminina do eu-lírico, transformadas em ricas
figuras de linguagem como metáforas, analogias, comparações, sinestesias, hipérboles
e antonomásias. A paisagem, o clima, os utensílios: fora é dentro e tudo se
confunde e se imiscui na mulher. Se lemos A mulher submersa com o centro
temático nas relações mulher/mulher, homem/mulher, estes quatro versos se
tornam conclusivos: “tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais//eu te
amo mais, meu amor// porque tu me amas com amor apenas/mas eu tive que aprender
a te amar com ódio”.
A mulher
submersa pode também ser entendida como uma alegoria, pois não se
trata de uma mulher específica, mas de todas as mulheres, do passado, presente
e futuro: “somos loucas, o meu amor me diz// somos, respondo. loucas daquela
loucura iluminada que sobe por/um corpo quando nele se levanta uma legião”.
Há no livro um grande sentido de irmandade, a mulher submersa é uma comunidade
inteira. A imagem que o título do livro evoca permite levar a muitas
associações e a leitora/o leitor pode até mesmo pensar na Atlântida, a sede da
antiga civilização que supostamente existiu no oceano Atlântico e que há milhares
de anos teria sucumbido a um cataclismo geológico ou à degeneração de seus
costumes, o que teria levado os atlantes à ruína, provocando a ira dos deuses.
Na Idade Média o mito de Atlântida encontrou muitas versões, no Renascimento
foi retratada como a cidade ideal dos sábios. Na era das invasões, conhecidas
como descobrimentos, surgiram teorias que viam os indígenas como descendentes
dos atlantes, ligando assim as Américas ao continente submerso. Podemos nos
lembrar da Atlântida lendo A mulher submersa porque suas páginas evocam
tragédia, naufrágio e uma sobrevivência mágica: “Porque é assim que amo,
lendária e triste”.
Mar
Becker trabalha com uma simbologia poderosa ao falar do feminino.
Sua escolha pela água, o elemento primordial, símbolo da emoção, encaixa-se
perfeitamente em um eu-lírico que sugere um recuo para o útero, a fim de voltar
a um tempo sem fardos; não à toa, a morte também é presença constante nessa
poesia. Repleta de ambiguidades, a voz lírica assume as acusações imputadas às
mulheres e se declara bruxa e ser coletivo. A mulher é temível para o homem e
para Deus. Longe de negar, o eu-lírico reforça a bruxaria como poder, o poder
de conhecer as forças telúricas, conhecimento herdado no tempo e repassado
coletivamente, do uso do sobrenatural (aquilo que ainda não entendemos) e da aproximação
com o mundo onírico: “havia noites que eu e minha irmã dormíamos com
nossas/bonecas//antes de apagar a luz, dizíamos seus nomes, abraçando-as/depois
tomávamos alguma distância, para olhá-las//para chamá-las pelo nome e imantar
seus corpinhos de pano/com relâmpagos”. Assim é inserida a menstruação,
fenômeno associado com a paga de sacrifício pelos mortos, para vingá-los. Nesta
simbologia, a liberdade (pássaro) vem à custa de dor “arrancar a
bicadas meus pelos pubianos” para construir um ninho, ou seja, para
construir algo (um lar do lado de fora) a partir do feminino.
Sobre a
fantasia, Carl Gustav Jung afirmou que “Pelo pensamento fantasia se
faz a ligação do pensamento dirigido com as camadas mais antigas do espírito
humano, que há muito se encontram abaixo do limiar do consciente”. É essa a
impressão que temos ao ler A mulher submersa, a de que Mar Becker
está habilmente trabalhando esses conteúdos antigos, arquetípicos, que seus
versos habitados pela contundência do real e pela força da imaginação despertam
velhas imagens, velhas ambiguidades que, em particular, vão dizer de uma
história secreta das mulheres.
Na
história secreta das mulheres que a poeta canta, a mulher pode criar para além
da maternidade. Já nos primeiros versos nos é colocada a infertilidade e a
fertilidade de uma mulher estéril: “eu então sou uma mulher estéril repleta
de estrelas/de constelações”. O fim da linhagem não assusta a mulher
infértil, pois ela não tem mais um compromisso com a geração de homens, mas com
o fio invisível que une todas as mulheres do mundo, de todas as épocas,
conhecedoras de um cativeiro comum. O canto que Mar Becker estabelece
olha o comezinho da vida, por exemplo, calcinhas no varal, para tecer as
reflexões que alcançarão cada mulher em sua casa e em sua intimidade. O
eu-lírico, apesar de declarar seu amor em relações heterossexuais, todo o tempo
olha para o corpo das mulheres, em um exercício que se assemelha ao voyeurismo.
É um jogo de espelhos em que a mulher está enamorada de si mesma. Admite que a
relação com a mãe foi de proteção, medo e desejo, identifica-se com esse amor. Nos
momentos em que a mulher submersa está na companhia de um homem, é a si que ela
descreve em detalhes, não ele; é o corpo da mulher que lhe interessa, quando lhe
escapa uma vontade: “imitando uma moeda em estilo antigo//poderia arrancá-lo
do cordão e depositá-lo como um óbolo na/tua boca entreaberta. é o que os
gregos faziam com seus mortos/ na certeza de que o barqueiro seria pago”. Não
sendo possível matar ou morrer, a mulher submersa se contenta com a pequena
morte do gozo e o cheiro do próprio sexo: “algo do cheiro das minhas
coxas/do meu sexo, de quando estava gozando em tua boca”. Eros e Tanatos se
apresentam muitas vezes na sua oposição /completude: “algo como um sonho que
homens sonham, entre o espelho/e o lodo”, imagem adorada de si e um terreno
pantanoso.
É fácil aceitar
uma mulher por uma ordem social, uma mulher fabricada socialmente, feita para
obedecer, apanhar e calar; porém, que amor resiste à sombra, ao que é
imperfeito, sujo? É imperfeito, sujo, aquilo que rompeu a sua ordem social e
deseja. A mulher submersa é sexualizada e não é mãe. É uma mulher que já perdeu
demais e está em franca disposição: “falta-me em mãos algo de desolador”.
Na fantasia, a mulher submersa se vê animal mitológico, antropomórfico, capaz
de habitar as águas abissais como o fizeram outras escritoras, mulheres tão
submersas quanto o eu-lírico do livro, evocadas por similaridade: Safo,
Virgínia Woolf, Sylvia Plath, Ana Cristina César. Mulheres que visitaram as
profundidades com perigosa regularidade e que exigiram o recolhimento para
poderem ser, poderem sentir a mínima partícula que comunga no mundo “uno”: “a
partícula de sal retida à ponta de um cílio/fazer disso uma cosmogonia”.
A mulher
submersa fala de uma mulher escondida que pode vir à tona a qualquer momento,
uma mulher prestes a se mostrar inteira. Uma Atlântida procurando, ela mesma, a
sua localização concreta.
por
ficarem muito tempo expostas ao ambiente do lar, as donas/ de casa acabam sendo
tomadas pelo lar. é como numa doença// as cenas domésticas avançam no seu sono
do mesmo modo/ que a febre avança no sangue/ assim as donas de casa preveem o
futuro. dizem que em breve/ a rebelião virá
.
começará
na cozinha/ os talheres permanecerão na gaveta, mas à noite/ a certa hora do
sono teremos pesadelos envolvendo rostos/ deformados// tal como quando os vemos
refletidos/ no aço da colher// bocas tortas; narizes enormes, côncavos,
convexos// o uivo de uma cadela de rua entrará pela fresta da porta/ à soleira/
e até a faca que deixamos na mesa/ qualquer prateamento esquecido assim/ qualquer
lâmina disposta no escuro/ poderá acender-se, renovando em nossas mãos/ toda
uma disposição arcaica para matar
.
(excerto
do poema breve ontologia doméstica, pag. 89/90)
***
A mulher submersa
Mar Becker
Poesia
Editora Urutau
2020
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