Por
Adriane Garcia
Entre a
dimensão filosófica e a fabulação, a poeta Michaela V. Schmaedel nos
entrega um livro de aprofundamento temático e apuro da linguagem. Se em seu
primeiro livro, Coração cansado, a temática próxima dos processos de
luto privilegiam uma subjetividade mais solitária, neste Quênia – poemas de
viagens, a subjetividade é mais solidária. A poeta sai de si tocada pelo
mundo exterior e entra em si a partir deste mundo para comungar com ele. É a
comunhão com a natureza na sua rusticidade e pureza, sentida como uma epifania,
que ela nos comunica em poemas certeiros, econômicos, que contam com sugestões
e silêncios.
A viagem
de Michaela V. Schmaedel ao Quênia leva a uma busca das origens.
É do ponto mais alto da África que o eu-lírico declara sentir a queda da
humanidade: “feito pedra/ espreita o mundo// feito homem/sente a queda”.
O eu-lírico caminha para a reflexão sobre a espécie humana desde o seu
continente ancestral, colocando-se não só no lugar do humano, mas
emprestando-se, como nas fábulas, ao bicho, às pedras, aos rios, à vegetação
para ver a si.
O efeito
da reflexão filosófica (uma ontologia) e a força dos elementos arcaicos das
fábulas potencializam a leitura, tocam em arquétipos, questões existenciais
antigas cuja premência se situa no presente. É de se notar que o livro evoca
nossa natureza comungada com os outros seres quando essa comunhão se mostra
esquecida e o homem não é capaz de ler o bioma em que vive ou acolher vias
sustentáveis para conviver no planeta.
“A
terra escreve
a árvore
escreve
a
montanha escreve
o rio
escreve.
Nós é que
somos
limitados
na leitura.”
A poesia se
beneficia da metáfora e a ela nenhum estranhamento causa a fábula; desde os
tempos imemoriais possuímos modelos de histórias em que falamos por meio dos
outros seres. Em nossa memória ancestral sabemos de elefantes, hienas,
montanhas, girafas que nos contam histórias ou que delas fazem parte para nos
simbolizar algo. Em Quênia, esses elementos vêm articular os tempos,
questionar e atualizar o homem e o animal que a memória coletiva deve
preservar.
“Há
muitas
linhas do
Equador
a dividir
os trópicos.
Há muitos
modos de
olhar
o mesmo
animal.”
Ao olhar
a paisagem e os seres que a habitam, o ser humano penetra na sua própria noite,
que é abismo, dor e morte. A condição humana da qual não se pode fugir (mas
tenta-se todo o tempo) alcança a consciência nessa simbiose e isso talvez fosse
benéfico para que o homem desenvolvesse outras relações que não as do predador
no topo da cadeia alimentar:
“À
NOITE
Procuro
ossos
carcaças
pego
eu mesma
o que
consigo.
Carrego
eu mesma
a morte.”
Em Quênia,
a espacialidade, a distância tomada pelo eu-lírico, resultam numa prospecção.
Vê-se de longe e de perto, para frente e para trás, coletivamente e
individualmente. O eu-lírico também fala de suas dores pessoais: “No lugar
da caça/ do bicho quase não vivo/ na savana das presas/ me encontro.” É
neste lugar da perda que ele se identifica. O ser humano olha para si, olha
para os outros seres e se dá conta do que lhe falta, seja o capim mais verde, a
pessoa amada na penumbra ou mesmo um sentimento que o una aos outros. Sua
constante é a luta e a persistente ilusão de que está separado do mundo:
“HIENA
Sorrateira
no passo
a passo
da caça
atrás do
coração
que lhe
falta.”
Michaela
V. Schmaedel retrata-nos um mundo dessacralizado mostrando-nos
um outro onde ainda era possível um sentido religioso de “relegere”
(reler) ou o “religare” (religar). Para isso nada melhor do que figuras
que nos aproximem dos “mythos” (fábulas). Procura-se Deus, mas nada
indica que possa ser encontrado, exceto na beleza:
“FLAMINGOS
Procuram
Deus no
silêncio
das águas”.
Diante da
paisagem do Quênia, a poeta está tomada de beleza. Havendo uma moral da
história, elemento fabuloso, podemos dizer que ela consta no primeiro poema do
livro, aviso oracular do qual deveríamos ler todas as linhas e entrelinhas:
“Ainda
somos o homem
ancestral
agachado
na savana
do Quênia.”
***
Quênia – poemas de viagens
Michaela V. Schmaedel
Editora cas’a
2021
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