quarta-feira, 11 de julho de 2018

A oração do carrasco – De Itamar Vieira Junior





O livro A oração do carrasco (ed. Mondrongo), de Itamar Vieira Junior, traz sete contos, narrados com intensa sensibilidade e grande capacidade de emocionar o leitor.

Seus personagens são os escravizados, os banidos, os incompreendidos, os fracassados, os injustiçados, os expropriados, os exilados. Sua matéria é a solidão.

Em A oração do carrasco, Itamar não só dá voz aos silenciados, como trabalha a história dos perdedores pelo viés crítico e humanizador. Violências atuais como o racismo, herança da escravidão no país, aparecem tanto na história de uma escravizada em fuga, Alma, quanto no tratamento dado aos refugiados negros no país, no conto Meu mar (fé), em que uma senegalesa refugia-se na Bahia como imigrante ilegal.

Em A floresta do adeus, Itamar traz a metáfora do preconceito como fronteira, da separação, da impossibilidade do convívio; ao mesmo tempo, da força de transformação do amor e da solidariedade. Força de transformação é o que também se encontra no conto que dá nome ao livro, pois o carrasco, cuja profissão vem de antiga e ininterrupta linhagem, acaba por encontrar a surpresa e a mudança.

É destacável a extrema solidão de todos os personagens de Itamar Vieira Júnior. No conto O espírito aboni das coisas, Tokowisa, o guerreiro indígena, procura pela floresta a planta abatosi, para curar sua esposa grávida e doente, enfeitiçada pelo xamã da tribo inimiga. Apesar de ter seu aboni (espírito) ligado a tudo, árvores, céus, bichos, Tokowisa precisa decidir sozinho sobre a vida e a morte. Em Doramar ou A odisseia, a empregada doméstica, que “é como se fosse da família”, parte da epifania para a memória, da memória para o esquecimento, numa viagem em que, à medida que esquece, lembra, adentra no passado, como em um processo de alzheimer. É quando o leitor descobre o que precedeu a Doramar e sua comunidade, até chegar ali, no lugar quase imóvel da desigualdade social.

No último conto, Manto de apresentação, uma voz é ouvida pelo homem negro, pobre, estigmatizado, preso numa cela de manicômio. Ele é Arthur Bispo do Rosário. A voz transforma a sua realidade, dá-lhe o tamanho gigante que tem, ordena que ele mude seus dias até seu encontro com Deus. E Arthur transmuta a miséria em riqueza e cor, em fé e sonho.

Itamar Vieira Junior constrói um livro sem a facilidade dos maniqueísmos, seus personagens de carne e osso olham-nos diretamente. E sabemos que estamos próximos deles, muito próximos.



"Dominique me diz que eu não devo ter muita esperança nem esperar muita bondade dos brasileiros. Fala que o preconceito contra nossa cor e nossa origem são muito fortes por aqui. Ela compreende mais o português porque chegou há mais tempo e me fala coisas que eles fazem sorrateiramente, e que se fizeram notar. Dominique fala que mesmo os negros daqui sofrem discriminação. Ela me diz, enquanto andamos pelas ruas até a calçada onde estendemos nossas mercadorias: “Olhe ao seu redor e veja onde estão os brancos e onde estão os pretos”, olhava então para os edifícios e continuava dizendo “olhe à sua volta e veja como estão separados, como eles andam separados, como as mulheres negras andam atrás de suas patroas, segurando suas crianças. Olhe para as pessoas que tentam trabalhar e vão para a rua vender seus materiais, são quase todos como nós”. Ela andava rápido, mas atenta a todos os passos, “Já observou quem atende os portões dos prédios? Quem guarda os carros nas ruas? Quem dirige os ônibus?” olhava para mim com os olhos vivos, “sabia que as empregadas não podem usar os banheiros das patroas? Os engenheiros no Brasil cuidam de fazer um banheiro só para elas” e concluía com pesar: “aqui negro é um cidadão de segunda classe. Como nos Estados Unidos. Como na Europa”."
(p. 116/117)


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A oração do carrasco
Itamar Vieira Junior
Contos
ed. Mondrongo
2017

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