O livro A
oração do carrasco
(ed. Mondrongo), de Itamar Vieira Junior, traz sete contos, narrados
com intensa sensibilidade e grande capacidade de emocionar o leitor.
Seus personagens são os
escravizados, os banidos, os incompreendidos, os fracassados, os
injustiçados, os expropriados, os exilados. Sua matéria é a
solidão.
Em A
oração do carrasco,
Itamar não só dá voz aos silenciados, como trabalha a história
dos perdedores pelo viés crítico e humanizador. Violências atuais
como o racismo, herança da escravidão no país, aparecem tanto na
história de uma escravizada em fuga, Alma, quanto no tratamento dado
aos refugiados negros no país, no conto Meu mar (fé), em que uma
senegalesa refugia-se na Bahia como imigrante ilegal.
Em A floresta do adeus, Itamar
traz a metáfora do preconceito como fronteira, da separação, da
impossibilidade do convívio; ao mesmo tempo, da força de
transformação do amor e da solidariedade. Força de transformação
é o que também se encontra no conto que dá nome ao livro, pois o
carrasco, cuja profissão vem de antiga e ininterrupta linhagem,
acaba por encontrar a surpresa e a mudança.
É destacável a extrema
solidão de todos os personagens de Itamar Vieira Júnior. No conto O
espírito aboni das coisas, Tokowisa, o guerreiro indígena, procura
pela floresta a planta abatosi, para curar sua esposa grávida e
doente, enfeitiçada pelo xamã da tribo inimiga. Apesar de ter seu
aboni (espírito) ligado a tudo, árvores, céus, bichos, Tokowisa
precisa decidir sozinho sobre a vida e a morte. Em Doramar ou A
odisseia, a empregada doméstica, que “é como se fosse da
família”, parte da epifania para a memória, da memória para o
esquecimento, numa viagem em que, à medida que esquece, lembra,
adentra no passado, como em um processo de alzheimer. É quando o
leitor descobre o que precedeu a Doramar e sua comunidade, até
chegar ali, no lugar quase imóvel da desigualdade social.
No último conto, Manto de
apresentação, uma voz é ouvida pelo homem negro, pobre,
estigmatizado, preso numa cela de manicômio. Ele é Arthur Bispo do
Rosário. A voz transforma a sua realidade, dá-lhe o tamanho gigante
que tem, ordena que ele mude seus dias até seu encontro com Deus. E
Arthur transmuta a miséria em riqueza e cor, em fé e sonho.
Itamar Vieira Junior constrói
um livro sem a facilidade dos maniqueísmos, seus personagens de
carne e osso olham-nos diretamente. E sabemos que estamos próximos
deles, muito próximos.
"Dominique me diz que eu não
devo ter muita esperança nem esperar muita bondade dos brasileiros.
Fala que o preconceito contra nossa cor e nossa origem são muito
fortes por aqui. Ela compreende mais o português porque chegou há
mais tempo e me fala coisas que eles fazem sorrateiramente, e que se
fizeram notar. Dominique fala que mesmo os negros daqui sofrem
discriminação. Ela me diz, enquanto andamos pelas ruas até a
calçada onde estendemos nossas mercadorias: “Olhe ao seu redor e
veja onde estão os brancos e onde estão os pretos”, olhava então
para os edifícios e continuava dizendo “olhe à sua volta e veja
como estão separados, como eles andam separados, como as mulheres
negras andam atrás de suas patroas, segurando suas crianças. Olhe
para as pessoas que tentam trabalhar e vão para a rua vender seus
materiais, são quase todos como nós”. Ela andava rápido, mas
atenta a todos os passos, “Já observou quem atende os portões dos
prédios? Quem guarda os carros nas ruas? Quem dirige os ônibus?”
olhava para mim com os olhos vivos, “sabia que as empregadas não
podem usar os banheiros das patroas? Os engenheiros no Brasil cuidam
de fazer um banheiro só para elas” e concluía com pesar: “aqui
negro é um cidadão de segunda classe. Como nos Estados Unidos. Como
na Europa”."
(p. 116/117)
***
A oração do carrasco
Itamar Vieira Junior
Contos
ed. Mondrongo
2017
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