Por Adriane Garcia
Deliciosa aventura é o
livro Aimó, uma viagem pelo mundo dos orixás
(ed. Seguinte), de Reginaldo Prandi. A edição é
um capricho, com lindas ilustrações de Rimon Guimarães.
O projeto gráfico é de Raul Loureiro e cada capítulo
é aberto com uma posição do jogo de búzios.
O livro narra a história
da “menina que ninguém sabe quem é”. Ela está
no Orum, o lugar onde ficam os orixás. Lá também
é onde ficam os mortos, à espera da reencarnação
no Aiê, a Terra.
Aimó, por ter sido
sequestrada na África pelo comércio de seres humanos e
ter sido levada, em um tumbeiro, muito nova para o Brasil, vendida
como escravizada, morreu sem saber de suas raízes, não
se lembra de sua família, não sabe se alguém
cultua sua memória, nem mesmo conhece qual é seu orixá.
Por isso não tem as condições necessárias
para retornar ao Aiê, para uma nova vida. Triste, a menina
chora tanto que inunda o lugar e acorda Olorum. Ele, então,
pai de tudo que existe, chama seus orixás Ifá e Exu.
Para reencarnar, Olorum determina que ela escolha uma mãe
orixá.
Juntos, Ifá, Exu e Aimó
percorrerão as histórias dos orixás para que ela
possa escolher sua proteção no Aiê. Nesta viagem,
o leitor se encanta pela mitologia africana, passa a conhecer um
pouco mais sobre cada orixá, além de se divertir com um
personagem guloso muito especial: Exu, uma espécie de
“faz-tudo” entre os orixás, o mensageiro sem o qual tudo
para.
A história é não
só encantadora como emocionante e ajuda a revelar, em
contraponto com as perseguições que sofrem as religiões
de matriz africana, o quanto há de ignorância,
preconceito e racismo ao rotular os ritos dos afrodescendentes.
Outro ponto muito interessante é
notar que nesta mitologia, não existe a perfeição
ou a exigência da perfeição, como dada no mito
cristão. Os orixás, que tanto podem ser masculinos,
femininos ou indefinidos, assim como os humanos, não são
somente bons ou somente ruins; relacionam-se, amam-se, odeiam-se por
vezes, se vingam, se reconciliam, se ajudam, guerreiam entre si, se
entristecem, se alegram. Não há a noção
de pecado, há a noção de dever. São
deuses que dançam.
Um livro que todos deveriam ler
e que tem um final lindo, surpreendente.
“Quando as águas
cobriram o leito de Olorum, ele despertou contrariado, cuspindo a
água salobra que engolira sem querer, e foi logo
reclamando:
— Só pode ser você,
Iemanjá, que eu fiz com este gosto de sal — Olorum cuspiu
repetidas vezes e continuou a falar à filha — e com esse
seu jeito destrambelhado de inundar tudo o que estiver a seu
alcance, menina levada!
Aos poucos, ele abriu os olhos
e se levantou sacudindo a túnica molhada. Olhou em torno e
não viu Iemanjá, mas sim uma menininha desconhecida,
Aimó, que chorava torrencial mente. Reclamou:
— Ah, então foi você
que veio interromper meu cochilo, omobinrin mi, minha menina. Mas
quem é você, afinal?
Aimó parou de chorar,
tremendo de medo de ser castigada. Tentou responder, mas sua língua
não obedeceu e ela conti nuou muda enquanto Olorum a
fitava de cima a baixo.
— Diga logo seu nome,
omobinrin mi! Vamos, fale!
Ela permanecia quieta.
— Eu ordeno: Orucó,
omobinrin!
— Meu nome é Aimó
— disse ela, fixando o olhar no chão e recomeçando o
choro.
— Pare de chorar. Quer me
molhar de novo, menina? Repita seu nome, eu não entendi.
— Aimó, é
Aimó.
— Hum, isso não é
nome de gente, nunca ouvi, e olha que eu sei de tudo, tudo que
existe fui eu que ordenei aos orixás que fizessem.
— Ouvi por aqui uns mais
velhos me chamarem assim.
— E sua família? Os
que ficaram no Aiê?
— Acho que não tenho,
esqueci. Ou melhor, fui esquecida.
— Entendi. Aimó
omobinrin, a menina que ninguém sabe quem é.
Aimó assentiu, ainda
amedrontada.
— E como vai fazer para
voltar para casa se a sua família não se lembra mais
de você, minha menina? Vai ficar para sempre aqui no Orum,
sempre ameaçando me afogar em seu rio de lágrimas?
Pobre de mim!
E ao ver lágrimas
brotando novamente dos olhos da menina, Olorum gritou com ela:
— Pare! Chega de choro.
Ela parou de chorar e ele
continuou:
— Vamos resolver isso logo.
Preciso defender meu direito ao descanso eterno.
Em seguida, Olorum parou um
instante, como quem reflete sobre as próprias palavras, e
disse:
— Pessoalmente não me
meto nas coisas do Aiê e no resto também não.
Quem resolve tudo são meus filhos, deuses que eu criei, que
os humanos chamam de orixás, a quem dei a mis são
de cuidar do mundo. Mas, como acabei envolvido nesta sua triste
história, vou ter que determinar que se ache uma solução,
omobinrin mi. Como é mesmo seu nome, ou aquilo que você
pensa que é seu nome?
— Aimó — disse ela,
já sem muita certeza.
— Aimó, ou seja lá
quem você for, minha querida menina esquecida — continuou
Olorum —, vou convocar imediata mente Ifá, meu
sabe tudo, e veremos por que você foi parar na condição
de permanecer presa aqui para sempre. Vou chamar também Exu,
meu mensageiro e meu faz tudo, porque sem ele nada se pode
fazer.
Olorum estalou os dedos
chamando Ifá e Exu. Em seguida, piscou para a menina.
Pela primeira vez depois de
sua morte, a menina sorriu.” (p. 12-15)
***
Aimó, uma viagem ao mundo dos orixás
Reginaldo Prandi
ed. Seguinte
2018
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