quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Exercício de leitura de mulheres loucas, de Cinthia Kriemler







Por Adriane Garcia




O que é a mulher louca? Qual mulher que rompe com o silêncio sobre sua própria condição e não é chamada por essa alcunha? O que é preciso fazer para ser uma mulher louca de vez? Essas são questões que se colocam da reflexão deste primeiro trabalho no gênero poesia da escritora Cinthia Kriemler. Com Exercício de leitura de mulheres loucas, Cinthia nos apresente uma poesia que centra a mulher como eu-lírico e como personagem. É exercitando a palavra que a poeta tanto comunica uma consciência quanto confessa e constata.
A palavra louca, tomada de sentido negativo na vida real, adquire na literatura a potência de criação e liberdade. Para falar de loucura, Cinthia não escolherá os versos em fluxo, de mergulho no delírio; ao contrário, seus poemas dão-se com racionalidade e medida, vindos de muita lucidez. A mulher não é louca porque se entrega às forças da natureza, mas porque desmascara os papéis de mãe, esposa, filha, amante e subordinada, atribuídos a si historicamente e, também, porque desperta de todas as ilusões.
Em poemas curtos, na sua maioria, o leitor encontrará um descortinamento. A mulher que relata e que é relatada sabe que dar-se de forma desmedida é que é perder a razão: “flor que se abre/ demais/ sente dor nas pétalas”. Mulher treinada para sorrir, enquanto os lutos se fazem, mulher que menstrua como realidade e como símbolo, mulher que pensa enquanto caminha.
É interessante notar que a loucura está em abrir os olhos e que abri-los é, paradoxalmente, uma espécie de cegueira. A poeta não nos poupa do conflito e relaciona não a morte à eutanásia, mas a vida. A vida é uma coleção de pedidos de socorro não atendidos e é certo que o maior pedido de socorro é o amor. Neste livro, o amor nos será dado apenas como ilusão traída, um instante de vaga-lumes na escuridão. No mais, a mulher louca não escreve realismo mágico e, por isso, não pode agradar ao leitor com um final feliz de contos de fadas.
O desejo é pelo recuo mais cedo, antes das tragédias acontecerem, apesar de ser tarde demais. A maturidade é buscada como forma de autoconhecimento, não para ser feliz, mas para não ser tragada pelo irrealizável, pois o roteiro pessoal fica engavetado, enquanto se vive a vida ditada pelos outros. A poeta compara a mulher fortalecida com a árvore do cerrado, preparada para renascer após períodos de seca e fogo.
Assim como na sua obra em prosa, que sempre pensa o próprio tempo, Cinthia Kriemler, também nos versos, denuncia a condição feminina, o machismo, a exploração do homem pelo homem, a guerra, a violência contra as crianças, a ditatura militar brasileira em 1964 e as atrocidades cometidas envolvendo tortura e ocultação de cadáveres.
Em um de seus poemas, a poeta afirma que um bom cavalo refuga quando vê um cabresto. Gosto de pensar nessa imagem para ler a poesia de Cinthia, pois um exercício de leitura para mulheres loucas há que considerar que a lucidez de enxergar o cabresto é imprescindível para exercitar a liberdade. Ainda que custe caro.


eutanásia


não é a dor. a dor eu sei.
o aperto, o peso, a ânsia
a água empoçada nos olhos.
eu sei. não é a dor. a dor eu vejo.
cheiro. lambo. chupo.
com a dor eu trepo.
é com o amor que eu não me ajeito.
esse altar tão alto. tão ar.
e eu tão abissal
peixe de profundezas. de fendas.
desprovida de luz. de som. de oxigênio.
é com a vida que eu não me ajeito.
não me acerto com coisa grande
demais (amor. adeus)
não, não é a dor.
a dor não mente. não engana.
é o amor que desliga os aparelhos.




nebulosa


nuvens demais
num céu de sábado
a boca seca buscando
o copo
o corpo suado buscando
a água
o céu orgulhoso
segurando o choro




lição 1


a coisa que aprendi
mais rápido
foi a me arrebentar
por inteiro




lição 2


desconfia em exaustão
de tudo o que puder toldar
visão razão realidade
te apega com cuidado
e pouco
ao que ficar




lição 3


das expectativas
a certeza de que
não se cumprem


***
Exercício de leitura de mulheres loucas
Cínthia Kriemler
Poesia
ed. Patuá
2018

* Texto originalmente publicado como prefácio do livro Exercício de leitura de mulheres loucas.





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