Por
Adriane Garcia
O
que é a mulher louca? Qual mulher que rompe com o silêncio sobre
sua própria condição e não é chamada por essa alcunha? O que é
preciso fazer para ser uma mulher louca de vez? Essas são questões
que se colocam da reflexão deste primeiro trabalho no gênero poesia
da escritora Cinthia Kriemler. Com Exercício de leitura de
mulheres loucas, Cinthia nos apresente uma poesia que centra a
mulher como eu-lírico e como personagem. É exercitando a palavra
que a poeta tanto comunica uma consciência quanto confessa e
constata.
A
palavra louca, tomada de sentido negativo na vida real, adquire na
literatura a potência de criação e liberdade. Para falar de
loucura, Cinthia não escolherá os versos em fluxo, de mergulho no
delírio; ao contrário, seus poemas dão-se com racionalidade e
medida, vindos de muita lucidez. A mulher não é louca porque se
entrega às forças da natureza, mas porque desmascara os papéis de
mãe, esposa, filha, amante e subordinada, atribuídos a si
historicamente e, também, porque desperta de todas as ilusões.
Em
poemas curtos, na sua maioria, o leitor encontrará um
descortinamento. A mulher que relata e que é relatada sabe que
dar-se de forma desmedida é que é perder a razão: “flor que
se abre/ demais/ sente dor nas pétalas”. Mulher treinada para
sorrir, enquanto os lutos se fazem, mulher que menstrua como
realidade e como símbolo, mulher que pensa enquanto caminha.
É
interessante notar que a loucura está em abrir os olhos e que
abri-los é, paradoxalmente, uma espécie de cegueira. A poeta não
nos poupa do conflito e relaciona não a morte à eutanásia, mas a
vida. A vida é uma coleção de pedidos de socorro não atendidos e
é certo que o maior pedido de socorro é o amor. Neste livro, o amor
nos será dado apenas como ilusão traída, um instante de vaga-lumes
na escuridão. No mais, a mulher louca não escreve realismo mágico
e, por isso, não pode agradar ao leitor com um final feliz de contos
de fadas.
O
desejo é pelo recuo mais cedo, antes das tragédias acontecerem,
apesar de ser tarde demais. A maturidade é buscada como forma de
autoconhecimento, não para ser feliz, mas para não ser tragada pelo
irrealizável, pois o roteiro pessoal fica engavetado, enquanto se
vive a vida ditada pelos outros. A poeta compara a mulher fortalecida
com a árvore do cerrado, preparada para renascer após períodos de
seca e fogo.
Assim
como na sua obra em prosa, que sempre pensa o próprio tempo, Cinthia
Kriemler, também nos versos, denuncia a condição feminina, o
machismo, a exploração do homem pelo homem, a guerra, a violência
contra as crianças, a ditatura militar brasileira em 1964 e as
atrocidades cometidas envolvendo tortura e ocultação de cadáveres.
Em
um de seus poemas, a poeta afirma que um bom cavalo refuga quando vê
um cabresto. Gosto de pensar nessa imagem para ler a poesia de
Cinthia, pois um exercício de leitura para mulheres loucas há que
considerar que a lucidez de enxergar o cabresto é imprescindível
para exercitar a liberdade. Ainda que custe caro.
eutanásia
não
é a dor. a dor eu sei.
o
aperto, o peso, a ânsia
a
água empoçada nos olhos.
eu
sei. não é a dor. a dor eu vejo.
cheiro.
lambo. chupo.
com
a dor eu trepo.
é
com o amor que eu não me ajeito.
esse
altar tão alto. tão ar.
e
eu tão abissal
peixe
de profundezas. de fendas.
desprovida
de luz. de som. de oxigênio.
é
com a vida que eu não me ajeito.
não
me acerto com coisa grande
demais
(amor. adeus)
não,
não é a dor.
a
dor não mente. não engana.
é
o amor que desliga os aparelhos.
nebulosa
nuvens
demais
num
céu de sábado
a
boca seca buscando
o
copo
o
corpo suado buscando
a
água
o
céu orgulhoso
segurando
o choro
lição
1
a
coisa que aprendi
mais
rápido
foi
a me arrebentar
por
inteiro
lição
2
desconfia
em exaustão
de
tudo o que puder toldar
visão
razão realidade
te
apega com cuidado
e
pouco
ao
que ficar
lição
3
das
expectativas
a
certeza de que
não
se cumprem
***
Exercício
de leitura de mulheres loucas
Cínthia
Kriemler
Poesia
ed.
Patuá
2018
* Texto originalmente publicado como prefácio do livro Exercício de leitura de mulheres loucas.
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