Por
Adriane Garcia
Disposto
em quatro partes, Memória dispersa, Pequeno tratado de cenas
alheias, Ampulheta sem areia e A descoberta pela palavra, o livro de
crônicas Onde se amarra a terra vermelha constrói narrativas
sensíveis e tocadas de beleza a respeito da memória.
Principalmente
nas duas primeiras partes, as crônicas se centram na infância e na
ancestralidade, refletindo sobre o passado e as transformações. As
situações vivenciadas em uma cidade do interior, mais
especificamente Guaracy, no interior do Paraná, em outro tempo e
outra geografia fazem elo com o adulto, professor e profissional da
área de Química, escritor, cujas experiências se alargarão em
outras viagens pelo mundo, encontrando assim, a terceira e quarta
partes do livro.
Na
viagem ao passado, o autor traz os gestos de cuidados recebidos na
infância, o primeiro dia de aula, o estranhamento ao ver o primeiro
professor do gênero masculino, quando até ali só tivera
professoras, inclusive na família, já que toda a educação era
passada por mulheres; é também notável a recorrência da figura
carinhosa da mãe. As reminiscências vão aos jogos de futebol,
barcos de papel na enxurrada, os tipos diferentes que habitavam a
cidade, igrejas, coroinhas, travessuras, o frio, a geada que matou os
pés de café e modificou a economia da cidade.
As
crônicas de Cremasco pontuam objetos caros à memória como novelos
de lã, cortinas vermelhas dos cinemas, álbuns de fotografias,
árvores de natal com tufos de algodão e o nostálgico realejo. Ao
refletir também por contemplação, o autor percebe a paisagem como
motor para o desencadeamento da recordação e da escrita.
Em
um livro onde o tempo é matéria central, depois de revisitar a
infância, o autor indaga sobre a morte, na tentativa de entendê-la
pelo viés da ciência, pelo tempo cíclico e por fim, pelo sentido
prático, já que ela é inevitável.
As
crônicas de Onde se amarra a terra vermelha tratam o passado com
delicadeza e gratidão, conscientes de que o presente é a sua
herança.
Cantiga
para quando João chegar
Entre
Santa Fé e Guaraci, o vento traz o frescor do Ribeirão Bandeirante
do Norte. Manhã discreta. Manhã qualquer em que as crianças
caminham sonolentas à escola e o pai, ao trabalho. Depois da louça
lavada e das camas arrumadas. Após o silêncio ocupar os cantos da
casa e o canto dos pássaros ecoar por entre as cortinas rendadas da
janela, de modo o Sol deixar o acanhamento e pipocar luzes em sua
face, a mãe caminha com vagar. Arrasta-se, como se carregasse um
tesouro. Senta-se, ajeita-se e toma um novelo de lã. Antes de
tricotar, sorri; dá o primeiro nó, laça, enleia, reza. Rezava para
João: confortá-lo do choro, guiá-lo nos primeiros passos,
protegê-lo dos tombos, até o seu embarque à capital e lá fazer a
vida para, quem sabe, um dia voltar doutor. Rezava para o filho fazer
boa viagem. Faria casacos de retalhos para o frio, frango recheado
com farofa e ovos, no caso de fome. Acompanharia-o à rodoviária.
Aconselharia a João para que tirasse a corrente, presente da avó, e
a guardasse enrolada em um lenço sob a sola de um dos pés. Não
esquecesse que, a cada estação, descesse, espichasse as pernas e se
refrescasse com o ar puro da inocência adormecida. No balanço do
ônibus, que sonhasse, desdenhando distâncias. Na cidade em que
chegasse, fosse direto à pensão recomendada. Acordasse na hora
marcada e comece o necessário. Lavasse as próprias roupas e as
passasse como quem permite um trem vencer trilhos com resiliência.
Na procura do emprego, deixasse o dinheiro em lugar apenas por ele
sabido. Ao atravessar avenidas, que prestasse atenção, olhasse para
os lados e, sem titubear, as cruzasse feito colibri. No trabalho, que
João fosse humilde sem, contudo, envergonhar-se das origens.
Orgulhasse da cor, da maneira de falar. – Poucas coisas são tão
importantes quanto as nossas raízes, João. A mãe desatou em uma
ladainha sem-fim: que João acertasse o circular, cedesse lugar às
gestantes, senhoras, idosos e impossibilitados. Não se envolvesse
com intrigas. Não madrugasse confusões nem alvorecesse prisões.
Não se embriagasse ou cultivasse inimizades. Se tomado pelo calor da
paixão, que a escolhida fosse, sobretudo, amorosa. Alugasse lugar
simples, de móveis simples. Nele houvesse sala, banheiro, cozinha e
algum ninho. Na chegada do filho, que João lhe ensinasse boas
palavras, bons modos. Fosse ponderado, atencioso. Calmo, ameno,
generoso. Tivesse a paciência de quem tece nuvens com o olhar e de
quem ouve com a serenidade de uma folha ao receber o carinho do luar,
todavia não recuasse diante de opinião divergente. Que a sua cabeça
virasse por conta do próprio pescoço e jamais de outro. – Leia,
João, leia muito. Estude, João, estude muito. Fosse mais ouvido e
menos boca. Usasse o coração e ponderasse com a razão. Se o tempo
o corroesse em rugas, a mãe rezava para que a velhice fosse qual
pedra obediente à estrada. Que João compreendesse as coisas da
época sem negar o passado. Tivesse saúde necessária para sentir a
idade com dignidade e entendesse a perda dos entes queridos como quem
consente a passagem do vento pela face. Na cadeira de balanço, à
medida que tecia, a mãe rezava pelas cataratas, reumatismo, asma.
Pela alma do filho encomendada na missa de sétimo dia. Rezava por
toda uma vida, enquanto João dormia, tranquilo, no seu ventre.
(p.
21-22)
***
Onde
se amarra a terra vermelha
Marco
Aurélio Cremasco
Nave
Editora
2018
Crônicas
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