quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Onde se amarra a terra vermelha, de Marco Aurélio Cremasco




Por Adriane Garcia


Disposto em quatro partes, Memória dispersa, Pequeno tratado de cenas alheias, Ampulheta sem areia e A descoberta pela palavra, o livro de crônicas Onde se amarra a terra vermelha constrói narrativas sensíveis e tocadas de beleza a respeito da memória.

Principalmente nas duas primeiras partes, as crônicas se centram na infância e na ancestralidade, refletindo sobre o passado e as transformações. As situações vivenciadas em uma cidade do interior, mais especificamente Guaracy, no interior do Paraná, em outro tempo e outra geografia fazem elo com o adulto, professor e profissional da área de Química, escritor, cujas experiências se alargarão em outras viagens pelo mundo, encontrando assim, a terceira e quarta partes do livro.

Na viagem ao passado, o autor traz os gestos de cuidados recebidos na infância, o primeiro dia de aula, o estranhamento ao ver o primeiro professor do gênero masculino, quando até ali só tivera professoras, inclusive na família, já que toda a educação era passada por mulheres; é também notável a recorrência da figura carinhosa da mãe. As reminiscências vão aos jogos de futebol, barcos de papel na enxurrada, os tipos diferentes que habitavam a cidade, igrejas, coroinhas, travessuras, o frio, a geada que matou os pés de café e modificou a economia da cidade.

As crônicas de Cremasco pontuam objetos caros à memória como novelos de lã, cortinas vermelhas dos cinemas, álbuns de fotografias, árvores de natal com tufos de algodão e o nostálgico realejo. Ao refletir também por contemplação, o autor percebe a paisagem como motor para o desencadeamento da recordação e da escrita.

Em um livro onde o tempo é matéria central, depois de revisitar a infância, o autor indaga sobre a morte, na tentativa de entendê-la pelo viés da ciência, pelo tempo cíclico e por fim, pelo sentido prático, já que ela é inevitável.

As crônicas de Onde se amarra a terra vermelha tratam o passado com delicadeza e gratidão, conscientes de que o presente é a sua herança.


Cantiga para quando João chegar

Entre Santa Fé e Guaraci, o vento traz o frescor do Ribeirão Bandeirante do Norte. Manhã discreta. Manhã qualquer em que as crianças caminham sonolentas à escola e o pai, ao trabalho. Depois da louça lavada e das camas arrumadas. Após o silêncio ocupar os cantos da casa e o canto dos pássaros ecoar por entre as cortinas rendadas da janela, de modo o Sol deixar o acanhamento e pipocar luzes em sua face, a mãe caminha com vagar. Arrasta-se, como se carregasse um tesouro. Senta-se, ajeita-se e toma um novelo de lã. Antes de tricotar, sorri; dá o primeiro nó, laça, enleia, reza. Rezava para João: confortá-lo do choro, guiá-lo nos primeiros passos, protegê-lo dos tombos, até o seu embarque à capital e lá fazer a vida para, quem sabe, um dia voltar doutor. Rezava para o filho fazer boa viagem. Faria casacos de retalhos para o frio, frango recheado com farofa e ovos, no caso de fome. Acompanharia-o à rodoviária. Aconselharia a João para que tirasse a corrente, presente da avó, e a guardasse enrolada em um lenço sob a sola de um dos pés. Não esquecesse que, a cada estação, descesse, espichasse as pernas e se refrescasse com o ar puro da inocência adormecida. No balanço do ônibus, que sonhasse, desdenhando distâncias. Na cidade em que chegasse, fosse direto à pensão recomendada. Acordasse na hora marcada e comece o necessário. Lavasse as próprias roupas e as passasse como quem permite um trem vencer trilhos com resiliência. Na procura do emprego, deixasse o dinheiro em lugar apenas por ele sabido. Ao atravessar avenidas, que prestasse atenção, olhasse para os lados e, sem titubear, as cruzasse feito colibri. No trabalho, que João fosse humilde sem, contudo, envergonhar-se das origens. Orgulhasse da cor, da maneira de falar. – Poucas coisas são tão importantes quanto as nossas raízes, João. A mãe desatou em uma ladainha sem-fim: que João acertasse o circular, cedesse lugar às gestantes, senhoras, idosos e impossibilitados. Não se envolvesse com intrigas. Não madrugasse confusões nem alvorecesse prisões. Não se embriagasse ou cultivasse inimizades. Se tomado pelo calor da paixão, que a escolhida fosse, sobretudo, amorosa. Alugasse lugar simples, de móveis simples. Nele houvesse sala, banheiro, cozinha e algum ninho. Na chegada do filho, que João lhe ensinasse boas palavras, bons modos. Fosse ponderado, atencioso. Calmo, ameno, generoso. Tivesse a paciência de quem tece nuvens com o olhar e de quem ouve com a serenidade de uma folha ao receber o carinho do luar, todavia não recuasse diante de opinião divergente. Que a sua cabeça virasse por conta do próprio pescoço e jamais de outro. – Leia, João, leia muito. Estude, João, estude muito. Fosse mais ouvido e menos boca. Usasse o coração e ponderasse com a razão. Se o tempo o corroesse em rugas, a mãe rezava para que a velhice fosse qual pedra obediente à estrada. Que João compreendesse as coisas da época sem negar o passado. Tivesse saúde necessária para sentir a idade com dignidade e entendesse a perda dos entes queridos como quem consente a passagem do vento pela face. Na cadeira de balanço, à medida que tecia, a mãe rezava pelas cataratas, reumatismo, asma. Pela alma do filho encomendada na missa de sétimo dia. Rezava por toda uma vida, enquanto João dormia, tranquilo, no seu ventre.
(p. 21-22)

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Onde se amarra a terra vermelha
Marco Aurélio Cremasco
Nave Editora
2018
Crônicas



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