Por
Adriane Garcia
Pistas falsas, de José Eduardo Gonçalves, é uma coletânea de narrativas breves, algumas das quais podendo ser classificadas como contos breves, micronarrativas ou microrrelatos. Nelas, a maestria do autor está em, principalmente, no tempo curto, conseguir desenhar um cenário, escolher aquilo que tem importância para a ambientação, enredo e a construção de personagens. Até mesmo as várias referências, deste que é um autor que lê muito, entram nos contos sem pedantismo, fluindo naturalmente nas narrativas. O conto, e seus derivados, sabemos, só tem vaga para o acerto.
Na era digital, observa-se um dinamismo das comunicações – o que não necessariamente significa eficiência. Há uma tendência que favorece a leitura das narrativas breves e brevíssimas, menores que um conto clássico (o tamanho para Edgar Allan Poe, “de meia hora a uma ou duas horas de leitura atenta”). A sociedade muda, mudando assim a literatura que produz e a sensibilidade na leitura. Um dos desafios da literatura, em tempos velozes, talvez seja o de, adaptando-se à leitura mais dinâmica, não ser superficial. Para além da brevidade, os contos breves e brevíssimos devem trazer narratividade e intertextualidade. O encadeamento da história é essencial, assim como o acesso aos conhecimentos – e sentidos – de quem lê, para que esse mundo prévio (uma coautoria) preencha as lacunas da narrativa e encontre as elipses, as entrelinhas, as sugestões, completando o texto com aquilo que não está escrito, mas está.
É assim, com uma dicção de frases econômicas, considerando a maximização dos elementos narrativos, que José Eduardo Gonçalves compõe os 53 contos de Pistas falsas. Em todos eles, maiores ou menores, há tensão, concisão e um suspense especial. Não o suspense que alivia com a descoberta no final, mas um suspense que se prolonga para o depois da leitura. Os narradores de Pistas falsas, maioria em primeira pessoa, conseguem de imediato a empatia do leitor, pois são complexos, humanos, fora de qualquer maniqueísmo, e seus destinos, em geral, deixam oculto o que ainda irá acontecer. É a leitora/leitor que deduz, imagina. Quem lê está convidado a um jogo que conhece bem, o da incerteza, pois a vida é esse devir do qual nada sabemos e é preciso conviver com a frustração de ter que adivinhar sem ser adivinho, de ter que deduzir por pistas que não necessariamente são o que interpretamos. Tudo pode acontecer.
Os personagens de Pistas falsas estão em constante hesitação, não sabem como agir e registram sua angústia diante da necessidade de escolher. São personagens que possuem a contenção que exige o cotidiano, porém, seus sentimentos são transbordantes. A maior parte se constitui de vidas trágicas que procuram um porto seguro, como no conto O corsário. Suas relações são incompletas, cheias de falhas. Os temas tratados são universais. Assim, temos a virilidade envelhecida em Crepúsculo, uma reflexão sobre a efemeridade, o erótico que nos perturba quando o corpo se deteriora porque Chronos é um grande devorador. Em Crepúsculo, o narrador está seduzido por pintas que aparecem no curto espaço de corpo descoberto de uma jovem (parte do ombro à mostra) que ele encontra casualmente em uma loja de discos. O desejo é sentido como uma invasão, um desnorteamento para uma época errada da vida.
Pistas falsas nos leva a ambientes traumáticos, mães tóxicas, gente que abandona e é abandonada; pais e filhos, seus relacionamentos, medos (um dos maiores, perderem-se um do outro na multidão). No conto Davi, dois narradores, o pai e a mãe na dor de perder um filho, os caminhos possíveis que a vida toma a partir disso, decepções, horrores; a herança dos aprendizados.
Em O tigre e outros bichos (uma das sessões do livro) o autor usa de muita imaginação. O bicho recorrentemente toma o lugar do personagem, em uma espécie de duplo. Nossa porção animal, viva, instintiva é bem aproveitada por José Eduardo Gonçalves em narrativas que possuem um tom onírico. O especismo, a vulnerabilidade dos animais sob nosso poder (de vida e morte) e a nossa própria vulnerabilidade são colocadas em evidência, ser caça e caçador, comer e ser comido. Há a representação da animalidade como fantasia, fuga da realidade, o desejo de morar com (e nos) bichos. Nessa sessão o autor desperta o alumbramento que nos causa as histórias de transformação em animais, antropomórficas, fantásticas, transmutadas, indo de encontro ao nosso encantamento primitivo, anímico, totêmico, fabuloso.
É interessante notar que em um jogo de metalinguagem, o autor recorre em mais de um conto à indagação de “como retornar ao enredo original?”. Essa, que é uma pergunta sobre a vida, mas que se transmuta em uma pergunta sobre a escrita. Como se ter o controle sobre a história que escrevemos pudesse nos dar a chave para controlar a própria história, depois de termos seguido tantas pistas falsas. O dilema colocado nesses contos sempre retorna à angústia da escolha e seus efeitos, suas consequências. “Sim, estamos perdidos” o autor diz no colofão. É o que acontece quando lidamos o tempo inteiro com a imprevisibilidade e, convenhamos, escolhemos onde pisar no terreno movediço do qual sequer conhecemos a profundidade, mas sabemos bem que já nos afundamos muitas vezes. Esses sentimentos que o autor faz a leitora/o leitor acessar garantem um efeito que estende o que foi dito para outras experiências. É como se conhecêssemos, em algum íntimo, seus personagens.
“Mentiras
Corto os meus cabelos porque talvez assim eu consiga dizer a ele que não o amo mais. Aquela mulher morreu, e eu preciso dizer a ele como sou agora, diferente daquela a quem ele destinava as melhores mentiras. As mais lindas, falsas e inacreditáveis mentiras que um homem poderia dizer a uma mulher - e nas quais eu acreditei. Anos e anos a fio. Agora descobri que também posso mentir a ele. Por isso vou dizer a ele que não o quero mais. Então, corto os cabelos que ele gostava de puxar enquanto nos incendiávamos na cama. Assim, talvez ele acredite. Talvez eu mesma acredite.”
“Abismo
— tudo o que eu queria era uma chance.
— Ora, sua chance é agora. Pule antes que se arrependa.”
“O caçador
No fundo da água turva, em meio à lama que desce das margens, galhos retorcidos e algas em profusão, enxergo o que os outros não enxergam. Os outros me temem justamente pela capacidade de ataques improváveis, quando tudo é silêncio e a escuridão é o refúgio dos menos ágeis. Dizem que sou um grande caçador. Sorrateiro, rápido, nada confiável. Acontece que há dias infelizes. Acabo de ser atravessado por um arpão e sei que não adianta me debater. Daqui a pouco serei içado à superfície e exibido como um troféu. A agonia da morte não me amedronta, já a testemunhei centenas de vezes. Aos que ainda não aprenderam, escutem uma coisa. Tudo é inútil. Seremos mesmo devorados em algum momento. Até lá, divirtam-se. E até que nos encurralem, sejamos impiedosos.”
***
Pistas falsas
José Eduardo Gonçalves
Contos
2023
ed. Patuá