sexta-feira, 6 de maio de 2022

Ao pó, de Morgana Kretzmann


 


Por Adriane Garcia

 

Em 1932, no Congresso Internacional de Psicanálise em Wiesbaden, na Alemanha, por ocasião do septuagésimo quinto aniversário de Freud, Sándor Ferenczi levou a púlpito um assunto espinhoso, do qual a sociedade jamais gostara de falar a respeito, sequer de mencionar: o abuso sexual infantil cometido por familiares adultos. O trauma (fator externo) como causa de transtornos mentais, que fora deixado em segundo plano por Freud, ao abandonar a sua “teoria da sedução” (a Psicanálise sofria severos ataques que se agravariam ao afirmar a existência de uma sexualidade infantil), retornava assim com todas as letras em Ferenczi, que as publicaria no ensaio “Confusão de línguas entre o adulto e a criança”: “Pude, inicialmente, confirmar a hipótese já anunciada de nunca se insistir o bastante na importância do traumatismo sexual como fator patógeno. Até crianças de famílias honoráveis e de tradição puritana são, mais frequentemente do que se ousava pensar, vítimas de violências e violações. São ou os próprios pais que buscam um substituto para suas insatisfações, dessa forma patológica, ou pessoas de confiança, membros da mesma família (tios, tias, avós), preceptores ou o pessoal doméstico que abusam da ignorância e da inocência das crianças.

 

Com isso, Ferenczi estava dizendo que a doença de suas (e seus) pacientes não estava relacionada apenas a fantasias edipianas, mas a fatos, com toda a sua carga de violência física e/ou psíquica: “A objeção que se faz, vendo-se nisto fantasmas da própria criança, isto é, mentiras histéricas, perde infelizmente sua força, em consequência do considerável número de pacientes em análise, que confessa ações desse tipo em crianças.

 

O livro de Morgana Kretzmann, Ao pó, traz-nos não só a trajetória de uma mulher abusada sexualmente na infância, como uma construção primorosa de personagem. A narradora e protagonista é a jovem atriz Sofia, que foi morar no Rio de Janeiro para deixar para trás tudo o que representava sua cidade natal, Tenente Portela, no interior do Rio Grande do Sul. O  ponto de partida para entender a trama é a infância da narradora e de sua irmã, Aline. Na primeira cena, uma festa de aniversário, elas estão com quinze e onze anos. Sabemos da gravidade do que acontece, pois é preciso que Sofia dê um “banho do esquecimento” em Aline. Mas ao contrário do que pensa o senso comum, a criança não esquece nada.

 

Com uma narrativa não-linear, a história vai nos dando, aos poucos, um quadro panorâmico da família de Sofia. É a família tradicional exposta na sua nudez, a família que, não raro, usa suas crianças para fins sexuais, em uma relação de poder, já que a criança é o elo mais fraco e portanto mais fácil de ser subjugado e confundido. A trama nos coloca em contato não só com o abusador mais evidente, mas com outros abusadores, homens e mulheres, também com os silêncios e omissões acerca daquilo que “é melhor não ver”. Mas  nada disso acontece sem gravíssimos danos.

 

Adulta, Sofia foge, mas não pode fugir de si mesma. Morgana Kretzmann nos mostra, habilmente, os sinais de permanência do trauma. Sofia não só é incapaz de proteger a sua própria vontade - sequer reconhecê-la - como se aproxima de relacionamentos cuja potência em feri-la ou levá-la à repetição do trauma é enorme. A autora é muito sutil em dar esses sinais quando, por exemplo, ao narrar a cena em que Sofia  conhece o dramaturgo famoso com quem terá uma relação conturbada, a personagem olha, mas não vê:  Ele acendeu e me devolveu o cigarro quebrado” ou “... um homem que me olhava como se entrasse dentro dos meus olhos e fosse até o centro da minha alma”. Ao se dizer fugindo de tudo o que é invasivo, é justamente ao encontro do invasivo que a personagem caminha: “Já estávamos saindo juntos há tempo suficiente para eu entender que Carlos não tinha intenção em assumir uma relação de verdade comigo” Ainda assim, diante dessa conclusão, ela insiste: “Não me contive, acabei ligando”.

 

Conscientemente, não há o que Sofia não saiba a respeito dos homens com quem se relaciona, que o que podem lhe oferecer é uma “caixa de sonhos”, com pesadelos dentro. O livro, inclusive, é permeado de momentos oníricos que se entrelaçam com a linguagem realista tão condizente com o tema. A narradora é uma mulher despedaçada, com autoestima baixa, apresentando descrédito sobre si, culpabilização e um mau encaminhamento de suas pulsões sádico-masoquistas: “Aperto a corrente um pouco. Ela geme mais.” Há perdão para quem pensa em se salvar, deixando a irmã sob o poder de um abusador? Porém, mais profundo ainda é pensar que para a criança, aquele que abusa pode ser também aquele que a ama e, deixando de abusar dela e passando a abusar de outra, joga também as vítimas em um conflito fraterno.

 

Em pleno adoecimento, bebendo para anestesiar o que não cessa de falar (o silêncio) e deixando o protagonismo da própria vida ser vivido por outro - no caso homens simulacros do abusador - Sofia entra numa espiral de depressão: “Parecia que eu estava em segundo plano, mas não era verdade, já que não havia nenhum plano para mim . Não via nenhum interesse em mim. Não havia nada de interessante numa pessoa como eu. Eu, uma personagem fraca, sem quereres, sem ambição, sem raiva, sem paixão, sem coragem.” É um eterno retorno do trauma que vai se agravando em Ao pó, até o ponto em que a personagem resolve romper sua relação de culpa e vergonha com o passado e encarar seus algozes. É justamente no momento perigoso em que Sofia tem o abusador já introjetado em si e, portanto, destruindo-se para matar o abusador, que um grande amor revela-se como clareira. Um amor chamado amizade, amor desinteressado, que não requer a protagonista sexualmente e será o seu apoio.

Ao pó é um livro importante, que nos propicia estar “colados” ao drama de sua protagonista e - por extensão - ao drama das crianças abusadas. Voltando a Ferenczi, ele nos fala que diante do abuso sexual a primeira coisa que a criança faria seria a recusa, um “não quero, isso me machuca”. Todavia, essa reação é inibida por um medo intenso. A força de um adulto é esmagadora para uma criança, ela ainda não tem meios para reagir de igual para igual. Assim, se submetem à força do agressor. “Mas este medo, quando atinge seu ponto culminante, obriga-as automaticamente a se submeter à vontade do agressor, a adivinhar o menor dos seus desejos, a obedecer esquecendo-se completamente de si, e a se identificar completamente com o agressor (...) Ela ao mesmo tempo é inocente e culpada, e sua confiança no testemunho de seus próprios sentidos está quebrada”.

Morgana Kretzmann conseguiu traduzir essa complexidade em um romance cuja linguagem é fluida, arte democrática (no sentido de que ela não escreve apenas para escritores), direta e capaz de emocionar. De um tema tão necessário ao debate público não se poderia desejar outra coisa. Leiam esse livro.

 

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Ao pó

Morgana Kretzmann

Romance

Patuá

2020