sexta-feira, 29 de junho de 2018

Notícias populares – de Tatiana Bicalho



Por Adriane Garcia

Primeiro livro da autora, Notícias populares (Edições de Minas), de Tatiana Bicalho, é um trabalho interessante e criativo.

Construídos a partir de notícias de jornais, os poemas trazem ficção, de modo explícito, para os versos.

Com humor, imaginação e inteligência, a autora ri e nos faz rir das notícias de jornais, dos assassinatos e tragédias tão propaladas e sensacionalistas às manchetes absolutamente desimportantes como “Caetano é fotografado no Leblon”, podendo narrar a história que precede a notícia ou a que dela procede, quando não brinca com a própria manchete.

Se a notícia chega manipulada – e chega –, Tatiana a manipula uma vez mais e confere a verdade da poesia ao cotidiano truncado, e tantas vezes falso, dos jornais.


Joyce, moreninha safadinha
top dez dos classificados
foi encontrada morta junto
da sua coleção de
pênis
causa mortis
provável suicídio
deixa um classificado
agradece a preferência



Tesão no protesto

durante as manifestações
dois estudantes aos gritos
retumbantes trocaram
seus olhares no meio da
multidão
ela gritava fora
ele respondia dentro
durante as manifestações
dois estudantes aos gritos
retumbantes trocaram
beijos ao som de tiros
de escopeta, spray de pimenta
cassetete e balas de borracha
durante as manifestações
dois estudantes morreram de tesão
televisionados pela emissora em cadeia
nacional em meio a uma tensão e em
plena recessão


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Notícias populares
Tatiana Bicalho
Poesia
Edições de Minas
2018


domingo, 10 de junho de 2018

Interrompidos – de Alê Motta






Por Adriane Garcia


Interrompidos (ed. Reformatório), de Alê Motta, é um livro de contos curtos, compostos de 4 a 7 parágrafos. Elaborando uma maneira de contar, quase uniforme, por todo o livro, Alê Motta condensa até o penúltimo parágrafo histórias que conduzem a emoção do leitor. É com maestria que a autora o leva a pensar exatamente o que ela quer que ele pense, porém é no último parágrafo de cada conto que ela o trai, que ela o engana, que ela lhe aplica uma espécie de inversão e susto. Ao não subestimar o leitor, Alê Motta não fala tudo, deixa espaço para o leitor continuar as histórias, ou compor o que não foi dito, mas sugerido. Na forma, Interrompidos também cumpre seu projeto temático: os contos interrompem expectativas.

Como assunto central, o livro destaca a morte, interrupção por excelência, seja por acidente, doença, velhice, suicídio ou, principalmente, assassinato. É ainda interessante notar que a maioria dos assassinatos, em Interrompidos, é cometido por mulheres, contra homens. O homem de Interrompidos é quase sempre aquele que trai, abandona ou maltrata.  

Nesta obra de Alê Motta não existe Deus, tampouco a culpa cristã, nenhuma moralidade que não seja a do alívio de se livrar da opressão. O desaparecimento do outro é solução recorrente e revisitada, histórias que poderiam ser de amor tornam-se histórias de vingança; mágoas infantis são guardadas como combustível para futuros desaparecimentos. A morte também se apresentará como solução para os conflitos entre irmãos, pais e filhos, pais e filhas, colegas de trabalho. Já a morte da mãe, não. A morte da mãe é sempre como a despedida de nossa única nave e o sentimento de se estar sem saída no mundo.

Em O erotismo, de Georges Bataille, Tanatos está sempre abraçado com Eros. Mal disfarçamos isso, mas sempre disfarçamos: “Um conjunto de condições nos conduz a fazer do homem (da humanidade) uma imagem igualmente afastada do prazer extremo e da extrema dor: os interditos mais comuns atingem a vida sexual e a morte, de modo que uma e outra formaram um domínio sagrado, pertencente à religião.” Disso também advém o aspecto grave que damos à morte. Ler Interrompidos é ter esse contato com uma narrativa sobre a interrupção definitiva chamada morte sem a presença do julgamento. Alê Motta disfarça a gravidade, inclusive do crime, escrevendo também com algum humor. Desvia nosso olhar do julgamento e nos mantém no fato (e no desejo). Quem é que nunca pensou na utilidade de (matar) morrer alguém? Os personagens de Alê Motta matam e são mortos. Por trás do “horror que intensifica a atração” há a vida. E a vida é tão difícil, quando nos é negado o amor.

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Prato principal

Frango assado com batatas portuguesas. Arroz branco, bem soltinho. Salada de rúcula e palmito. Molho de mostarda.
Fiz seu prato. Enquanto comia, falou do seu carro na revisão, do CD novo da sua banda predileta, reclamou do seu patrão e emendou na chuva que, se viesse, atrapalharia seu futebol.
Sentada na cadeira, ao seu lado, acompanhei a revisão, a banda, a possível chuva, a reclamação. Sou ótima para acompanhar. Sou como o molho de mostarda.
Ele terminou de comer. Eu sorri. O veneno demora uns minutos para fazer efeito.





Meu avô

Meu avô morava num sítio. Uma casa amarela com varanda. Portas e janelas brancas.
Ele amava andar a cavalo. Num dia calorento de janeiro ele cavalgou muitos quilômetros. Quando o sol se pôs voltou para casa. Caiu na soleira da varanda.
Depois do enterro ninguém encontrou o cavalo. Reza a lenda que ele é o único cavalo do mundo que cavalga todos os dias até o pôr do sol. E chora quando vê uma casa com varanda.

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Interrompidos
Alê Motta
Contos                                                          
2017
Reformatório