quarta-feira, 31 de julho de 2019

O estrangeiro – de Albert Camus





Por Adriane Garcia


Romance inesquecível do escritor franco argelino Albert Camus, O estrangeiro é narrado em primeira pessoa, pelo protagonista, o jovem Meursault. A história começa com a chegada de um telegrama, avisando-lhe da morte da mãe, que mora em um asilo, noutra cidade. Deste fato em diante, a reação do protagonista a essa notícia, seus pensamentos a respeito começam a causar estranheza no leitor, pois que Meursault não se comporta segundo os ditames da sociedade.

Meursault não tem sentimentos extremos, e o que se nos apresenta se parece mais com a indiferença; porém, mesmo a acusação de indiferença não poderia ser de todo verdadeira, pois Meursault sente de outra forma, manifesta-se segundo essa forma de sentir e tem uma sensibilidade aguçada para os elementos da natureza – os lugares são descritos como beleza convidativa, como se o ser humano destoasse do idílico quando simplesmente não vive essa natureza. Por exemplo, na cena em que Meursault toma banho de mar com a namorada, tudo é tocado por luz e leveza.

Mesmo quanto ao enterro da mãe, ele vai ao asilo, vela a mãe, se faz presente no enterro, faz o que tem que fazer, exceto fingir a emoção que não sente ou que não se uniformiza com o protocolo. Se não se importasse com nada, sincero como é, certamente não teria se dado ao trabalho de ir.

A primeira parte do livro (dividido em três) mostra o cotidiano de Meursault. Os dias seguintes à morte da mãe, a vida que continuava dentro da “normalidade”, namorando, fazendo amigos, indo ao trabalho, ao mar, aos passeios. Até que no segundo capítulo um trágico incidente acontece; o que nos leva à terceira parte. O julgamento.

No julgamento, o leitor percebe que todas as cenas e sentimentos que foram demonstrados no primeiro capítulo tinham importância crucial para se localizar no julgamento. Aqui, a reflexão sobre a condição humana, que já se vinha fazendo, aparece com mais contundência. Meursault continua escolhendo não mentir.

Expoente da corrente filosófica do Existencialismo, Albert Camus acreditava que a condição humana era tão absurda que só cabia como reação digna rebelar-se. É o que faz seu personagem. Meursault olha para a realidade com distanciamento, rebela-se mudamente, com os seus “não sei” e “tanto faz”. A vida, bem demonstra o exemplo de Meursault, não permite qualquer controle ou sentido; abandonamos e somos abandonados; a própria natureza ao nosso redor nos ignora.

Vale lembrar que O estrangeiro é escrito em uma época absolutamente sombria, durante a Segunda Guerra Mundial e que o próprio Albert Camus estava estrangeiro em Paris; depois, voltando à Argélia.

A grande habilidade do autor neste livro é dar a narrativa com tanta naturalidade que o absurdo se amplia. Ao fim, o leitor fica intrigado com o personagem; talvez porque ele tenha coragens que não temos, mas sentimentos que reconhecemos muito bem.

***
O estrangeiro
Albert Camus
Tradução de Valerie Rumjanek
Romance
Ed. Record



quinta-feira, 18 de julho de 2019

Extremamente barulhentos certos assuntos, por exemplo – de Pedro Bomba



Por Adriane Garcia


Muita poesia em sessenta páginas: Extremamente barulhentos certos assuntos, por exemplo (editora Urutau) traz 23 poemas que mantém o leitor em alerta. Sim, alerta. Da poesia de Pedro Bomba nenhuma palavra pode ser perdida; nelas, no encadeamento dos versos e sentidos, a surpresa, o alumbramento, o susto se tornam parte do jogo da leitura.

O livro, já no primeiro poema, parte da ideia quântica de energia e probabilidade. A palavra é esse “quantum” que desperta outros, motor e criação. O que parece aleatoriedade chega no exato lugar que o poeta premedita, dando a impressão de que todo o caminho trilhado só poderia ter dado ali. Ou não. Na verdade, alquímico e brincante, o poeta poderia ter nos oferecido o resultado que quisesse, mas sempre faz isso de modo inusitado. É esse trabalho que Pedro Bomba utiliza em toda a coletânea, no qual a palavra tem energia suficiente e surpreendente para trazer outra:

aqui instaura-se a imagem microscópica da matéria quân-
tica em escala subfrontal descritas tal qual o fenôme-
no macroscópico diversos casos apontam que a palavra
quântica quer dizer a quantidade na mecânica a palavra
refere-se a uma concordância discreta que a presunção atribui
a certas racionalidades:

1. como a energia de um elétron contido num átomo em repouso
2. como a energia de seu dialeto contido num átomo de meu
pouso

(...)”


Há um descompasso entre o poeta e o mundo. Na “gruta de chauvet” a primeira pintura rupestre registra o homem inconsolável e inconstante. A arte é remédio e sintoma e, também por ela, o poeta registra sua crítica contumaz ao capitalismo. Ao ser que não possui propriedade alguma, a palavra surge como representação – um modo de possuir a si, sua própria história. Os poemas guardam coisas que não temos ou nos foram tiradas e que passam a ser nossas. Em “desenho” A menina indígena desenha sua casa arrastada pelo trator, toda a vida se recria em seu desenho. Tanto a injustiça social quanto a violência contra os vulneráveis permeiam os mesmos versos cujo lirismo alcança imagens de beleza e desconstrução do senso comum:

à margem da br dois quatro sete quilômetro cinco
deita o desenho feito pela criança da aldeia

aqui descansa nossa casa ou a representação dela

observem nesta imagem como olham os animais
são olhos espantados embora estejam de costas
sei pelo cheiro colorido em seus focinhos (...)”


Poeta inquieto, nos versos de Extremamente barulhentos certos assuntos, por exemplo, a insaciedade da mente, a busca maníaca pela palavra, pelo verso, pela própria poesia, a necessidade de nominar as coisas, os gestos, os atos se tornam também tema. Não há função alguma para a poesia dentro da engrenagem colocada (eis sua rebelião inata), esta que nos rouba essência; essência que nem chegamos a descobrir qual é:

(…) penso como seria
se a gente não precisasse ser
alguma coisa nessa vida
digo
seria como pensar
se na vida a gente fosse alguma coisa
sem precisar ser (…)

Pedro Bomba lança um olhar para aquilo que se recusa a participar do que está posto, para os que podem ser confundidos com os loucos ou os descartáveis: um homem que dorme no colo de uma estátua ou um pano de chão feito com uma camisa velha. Também para os rebeldes, poetas da existência, como aquele personagem do poema “distraiu jesus e roubou um carro”, uma espécie de Exu, mensageiro que instaura a quebra no cotidiano e a profanação na vida comezinha da cidade. Cidade que tanto pode ser imaginária quanto real, tanto a cidade de origem, quanto a cidade onde se está.

Também sobre a geografia afetiva, o poeta se debruça. Nascido em Aracaju, Sergipe, e hoje vivendo em Belo Horizonte, Pedro Bomba traça seu mapa tecendo referências à cidade natal e aos “viadutos” internos; pontes que o ligam aos lugares para onde foi. O poema “mapa de uma cidade impregnada” é cheio de lembrança e saudade:

(…) 2. viver vinte e sete anos dentro da cidade que te levou ao país
pela procura de algo de alguma capital de algum mundo no
interior da poesia. (...)

Ler Extremamente barulhentos certos assuntos, por exemplo é ficar por instantes absorvido pelo poder da poesia. Um livro de encontro, desses que encontramos a humanidade de alguém na nossa humanidade.

No mundo quântico, não existe separação e a forma é uma espécie de ilusionismo dos sentidos; mas sem os sentidos, não haveria o que chamamos de mundo, apenas um mar de átomos. O mundo precisa de nós para ser mundo? Se tudo que existe é resultado de nossas abstrações (nem mesmo o dinheiro existe – crença na qual todos “combinaram” acreditar), por que vivemos tão miseravelmente e não criamos abstrações melhores? A poesia é um desses fazeres inúteis que procura dar conta dos nossos sentidos duvidosos, dos nossos mistérios profundos, daquilo que não sabemos – linguagem – se é maldição ou bênção.

Pedro Bomba contribui com sua rebeldia e estudo, inversão e potência, irreverência e refinamento, emprestando à palavra sua mente, corpo e voz. Poesia para ler e reler.



morar na literatura

resolvemos o problema com a dívida do banco
decidimos ontem que não iremos pagar

faremos poemas eletrônicos nos extratos e saldos
e depositaremos nos caixas

os funcionários lerão os versos sem fundos
nada escrito nada nadinha só viagem da minha cabeça

resolvemos ontem que vamos morar juntos no mesmo barco
eu confessei sobre meus medos e lemes e cais meus sais

falei de quando quebrei o braço três vezes
e como um empurrão é uma coisa potente

falei do murro na cara que levei do ex namorado da menina
que eu me apaixonei na escola, os óculos caíram
e eu não vi mais nada

o bom de apanhar numa briga é que para o resto da vida
a possível vingança será instaurada

mas eu prefiro as noites e os encontros
o prato que se come frio é demais para os meus sentimentos

resolvemos correr riscos e eu opto por um apito
ao invés do medo
o som do apito vai e volta

você chamou atenção
isso que vai e volta é um boomerang seu doido

pode ser também o estado permanente
dos últimos três anos afirmei
o qual faço poemas sobre coisas
que não existem palavras revuntáveis

coisas que eu vou longe demais
e no fim volto como se estivesse recitando poemas
para uma multidão de pessoas

elas me olham eu as vejo
e quero que todas elas te conheçam e
criem carinho por sua fome contínua
por preferir verde e roxo ao invés de propriedade privada

resolvemos morar na literatura um do outro
é isso que esse poema quer dizer

é algo gravíssimo, um erro, um equívoco
um descuido literário

morar na literatura um do outro é como confiar no vento
quase ninguém consegue enxergar, mas é óbvio que está aqui
vejam como balançam os versos de meu cabelo.”


***

Extremamente barulhentos certos assuntos, por exemplo
Pedro Bomba
Poesia
Editora Urutau
2018


terça-feira, 16 de julho de 2019

Nenhum espelho reflete seu rosto – de Rosângela Vieira Rocha





Por Adriane Garcia



Nenhum espelho reflete seu rosto (editora Arribaçã), de Rosângela Vieira Rocha, discute as relações tóxicas, o narcisismo, a psicopatia doméstica e a importância da construção de uma identidade centrada no autovalor.

A narradora, Helen, uma joalheira e designer na faixa dos quarenta anos, está preparando sua primeira coleção, quando recebe um misterioso telefonema. Deste telefonema em diante, terá que pensar no homem que tanto fez para esquecer: Ivan Hernández, um argentino que conheceu na internet e com quem manteve um relacionamento virtual.

Apesar de não ser exclusivo de um gênero, o narcisismo apresenta-se mais comumente nos homens, que valorizam qualidades como dominação, violência e controle, educados pelo machismo e pela masculinidade tóxica. Engana-se quem pensa que o termo psicopata aplica-se somente aos modelos hollywoodianos de serial-killers; na verdade, é raro que alguém já não tenha tido contato com um psicopata doméstico ou integrado, pois estão mais perto do que costumamos imaginar. Saber que existem, dentro de uma “normalidade”, aumenta nossas chances de reconhecê-los.

Enquanto o serial-killer usa da violência física para dar fim à vida de suas vítimas, o psicopata doméstico utiliza inúmeros e conhecidos subterfúgios para destruir seu alvo (podendo levar ao suicídio): sedução, desprezo, confusão, implacabilidade. Conhece e aplica uma coleção de abusos psicológicos. Como um habilidoso jogador, conduz sua vítima a um turbilhão emocional de estilhaçamento, enquanto lhe suga todas as energias (muitas vezes, financeiramente). Ao não conseguir ver o próprio rosto, o narcisista procura se ver no rosto alheio; porém, não suporta nada que seja inteiro e que se apresente melhor do que ele mesmo. O narcisista é também um grande invejoso.

É neste contexto que Rosângela Vieira Rocha nos faz acompanhar sua personagem. Temos apenas o relato em primeira pessoa, mas a existência de uma segunda vítima faz com que o leitor não duvide de Helen. E é ouvindo Helen que o leitor imagina os horrores pelos quais a segunda vítima passou, pois seu estado é ainda pior que o da protagonista.

Não há cura conhecida para um psicopata. Tudo que ele aprender em tratamento será usado como nova habilidade contra suas vítimas. A única salvação é interromper completamente, e o mais cedo possível, o contato, a despeito da força exercida pelo narcisista que é a de afastar e trazer para si, conhecendo de antemão (eles se preparam muito bem) as fraquezas do alvo.

Com uma narração dinâmica e informações curiosas sobre a gemologia e o setor joalheiro, alternando entre o presente da narradora de criar a coleção de joias e a correspondência eletrônica pela qual dá a saber sobre Ivan Hernández, Nenhum espelho reflete seu rosto cria um ambiente em que o leitor também se torna uma voz gritando para sua protagonista: – Saia daí!



A varanda do novo apartamento não era ao ar livre, como a anterior. Tinha uma porta que a separava do quarto de hóspedes, que estava desocupado, e podia ser trancada, mas possuía janelas, com persianas. Fumar era mais difícil nesse local, mesmo abrindo totalmente as janelas. Todas as vezes que o fazia, depois que apagava o cigarro e abria a porta, mesmo se estivesse na cozinha, Ivan forçava uma tosse e reclamava. Comecei a me sentir extremamente mal e acabei não fumando mais na varanda. Descia e ia até à rua quando podia, mas naqueles dias chovia muito. Senti-me lograda. Se era para não ser usado, por que me presenteara com o isqueiro de rodocrosita? Que piada de mau gosto teria sido aquela?
A atmosfera entre nós tinha sido de alguma maneira modificada, sem eu entender as razões. Não o tempo todo, para ser exata, mas algo me fazia trancar o maxilar e selecionar o que devia ou não dizer. Ivan se mostrava imperturbável, mesmo quando lhe dizia que ficaria no máximo uma semana em Buenos Aires, que não tinha ido para passear e sim para ajudar numa cirurgia que não houve.
Eu usava com frequência um vestido estampado, rodado e muito prático. Em certo momento ele disse que era feio, pondo defeito na combinação das cores. Fazia essas observações em meio a conversas longas sobre outros temas, como se tivessem pouca importância.” (p. 191/192)

***
Nenhum espelho reflete seu rosto
Rosângela Vieira Rocha
Romance
Editora Arribaçã
2019

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Racismo estrutural, de Sílvio Almeida




Por Adriane Garcia



"Achar que no Brasil não há conflitos raciais diante da realidade violenta e desigual que
nos é apresentada cotidianamente beira o delírio, a perversidade ou
a mais absoluta má-fé." 
Sílvio Almeida.


Livro imprescindível, Racismo estrutural, do advogado e filósofo Sílvio Almeida, compõe a coleção Feminismos Plurais, coordenada por Djamila Ribeiro.


O livro, além de traçar o desenvolvimento das conceituações dos tipos de racismo (concepção individualista, concepção institucional e concepção estrutural) explica as diferenças e proximidades entre preconceito, racismo e discriminação. Apesar de haver indubitável constatação de que “não há nada na realidade natural que corresponda ao conceito de raça”, com relação aos humanos, o fato é que o termo é usado politicamente todo o tempo, principalmente para definir quem vive e quem morre; quem receberá as benesses do Estado e quem não.


Sílvio Almeida mostra a ligação entre racismo e política, capitalismo e racismo, sendo impossível pensar capitalismo, colonialismo, liberalismo e neoliberalismo sem o racismo, até chegar à necropolítica, conceito desenvolvido por Achille Mbembe.


Um livro essencial para pensar o mundo atual (também no conceito de xenofobia) e, principalmente, para entender e pensar o Brasil: um país desde sempre dividido, estratificado, desigual, onde “as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos”.


Muito bem dito por Sílvio Almeida: “as instituições são racistas porque a sociedade é racista”.




A crise do Estado de Bem-Estar Social e do modelo fordista de produção dá ao racismo uma nova forma. O fim do consumo de massa como padrão produtivo predominante, o enfraquecimento dos sindicatos, a produção baseada em alta tecnologia e a supressão dos direitos sociais em nome da austeridade fiscal tornaram populações inteiras submetidas às mais precárias condições ou simplesmente abandonadas à própria sorte, anunciando o que muitos consideram o esgotamento do modelo expansivo do capital.
Chama-se por austeridade fiscal o corte das fontes de financiamento dos direitos sociais a fim de transferir parte do orçamento público para o setor financeiro privado por meio dos juros da dívida pública. Em nome de uma pretensa “responsabilidade fiscal”, segue-se a onda de privatizações, precarização do trabalho e desregulamentação de setores da economia. Do ponto de vista ideológico, a produção de um discurso justificador da destruição de um sistema histórico de proteção social revela a associação entre parte dos proprietários dos meios de comunicação de massa e o capital financeiro: o discurso ideológico do empreendedorismo – que, na maioria das vezes, serve para legitimar o desmonte da rede de proteção social de trabalhadoras e trabalhadores – ,da meritocracia, do fim do emprego e da liberdade econômica como liberdade política são diuturnamente martelados nos telejornais e até nos programas de entretenimento. Ao mesmo tempo, naturaliza-se a figura do inimigo, do bandido que ameaça a integração social, distraindo a sociedade que, amedrontada pelos programas policiais e pelo noticiário, aceita a intervenção repressiva do Estado em nome de segurança, mas que, na verdade, servirá para conter o inconformismo social diante do esgarçamento provocado pela gestão neoliberal do capitalismo. Mais do que isso, o regime de acumulação que alguns denominam de pós-fordista dependerá cada vez mais da supressão da democracia. A captura do orçamento pelo capital financeiro envolve a formulação de um discurso que transforma decisões políticas, em especial as que envolvem finanças públicas e macroeconomia, em decisões “técnicas” de “especialistas”, infensas à participação popular.
O esfacelamento da sociabilidade regida pelo trabalho abstrato e pela “valorização do valor” resulta em terríveis tragédias sociais, haja vista que o movimento da economia e da política não é mais de integração ao mercado – há que se lembrar que na lógica liberal o “mercado” é a sociedade civil. Como não serão integrados ao mercado, seja como consumidores ou como trabalhadores, jovens negros, pobres, moradores de periferia e minorias sexuais serão vitimados por fome, epidemias ou pela eliminação física promovida direta ou indiretamente pelo Estado – um exemplo disso é o corte nos direitos sociais. Enfim, no contexto da crise, o racismo é um elemento de racionalidade, de normalidade e que se apresenta como modo de integração possível de uma sociedade em que os conflitos tornam-se cada vez mais agudos.” (p. 205 a 207)


***
Racismo estrutural
Sílvio Almeida
Coleção Feminismos Plurais
2019
Ed. Pólen


quinta-feira, 11 de julho de 2019

Fundamentos de ventilação e apneia – de Alberto Bresciani


Fundamentos de ventilação e apneia – de Alberto Bresciani


Por Adriane Garcia


Ponho a cabeça para fora
da noite,
mas o que vejo
ainda não é dia.

(Alberto Bresciani)


Releio Fundamentos de ventilação e apneia (ed. Patuá), do poeta Alberto Bresciani. Dividido em duas partes, Ventilação espontânea e Apneia, o livro traz 76 poemas de grande beleza, riqueza de imagens, burilamento da palavra e profundidade.

A respiração, nosso primeiro movimento de troca com o mundo, inicia o ciclo inevitável de dar e receber. Recusar-se a esse exercício é encerrar o ciclo de vida como o conhecemos, ou seja, o ciclo respiratório. O pulmão é o órgão vital que nos submete ao contato sutil com o mundo. Se pela pele podemos evitar o contato indesejado, com o pulmão, a voluntariedade de não se comunicar com o mundo exterior significaria um suicídio, lento ou não.

Ocorre que a respiração, o exercício de dar e receber, pode ser harmônica ou desarmônica e seria muito fácil se aquilo que está dentro e aquilo que está fora permitissem fluir plenamente – estar vivo poderia significar ser feliz. Não à toa, na medicina chinesa, o sentimento relacionado ao adoecimento do pulmão é a tristeza. Não à toa, místicos e alguns cientistas alardeiam a prática da meditação (cuja base é inspirar, expirar) como solução para o reequilíbrio de nosso estar no mundo.

Ao escolher falar da respiração como centro temático de Fundamentos de ventilação e apneia, Alberto Bresciani, cuja poesia gira em torno da precariedade do humano, da incomunicabilidade, da inconsciência do sentido da vida (se é que o há) e da inadequação, vai direto ao ponto agônico. Viver e respirar são sinônimos para plantas e animais; animais diversos que, no ar ou na água, o poeta traz para figurar a linguagem, para transformar em literatura uma questão absolutamente universal.

Da apneia, depreende-se o movimento voluntário de ficar sem ar. Para alcançar outros territórios, o dos peixes, por exemplo. O ser humano pode treinar a apneia, ficar momentaneamente sem respirar – passar dos limites pode levar à morte – usando apenas o oxigênio já capturado nos pulmões e no diafragma para frequentar outros cenários, interromper a troca para alcançar outra visão. A apneia de Alberto Bresciani é a poesia. Em Habitat I, o nosso ato mais ancestral vai de encontro à origem da vida, que os poetas não sabem (e sabem):

Guardei sob a pele
todos os peixes, as conchas,
anêmonas, veleiros antigos
e recuperados aos sargaços

Ninguém conheceu
os oceanos que devoravam
as moças e os rapazes
de olhos castanhos

O silêncio da maré baixa
sabe o doce
de frutas selvagens,
um mundo híbrido,
primeiro, anfíbio

À custa de nomes marinhos,
sobrevivo
Aprendi a respirar na água.


Porém, contraditoriamente, respirar no nossa habitat “natural” surge como enorme esforço:

Então sobe, engole ar, arranca ar,
aceita armas, palavras de gente
distante, curativos no que se foi
Sobe, sai da água, tem asas
peixe-voador, tem forma, a chave,
uma porta, agora pernas, ouve,
são os verdes deuses da água,
sente a porta, pode e vai abrir.



A troca efetuada em um mundo marcado pela violência e pelo medo pode levar à síndrome de pânico, que se apresenta frequentemente sob a forma de falta de ar. A apneia também pode se dar de forma involuntária, durante o sono ou a vigília:

Surto

O que é essa trava
no meio da respiração?

Houve erro, desvio
do centro eletromagnético

orientador de tartarugas
homens e tubarões?

Dizem os manuais
que o surto não passa

de dez minutos
: o tempo certo

para cortar
os pulsos.

Trocar com o mundo é muito mais complexo do que dar gás carbônico e receber oxigênio. Toda a dinâmica da vida interior e exterior precisa encontrar um ritmo de menor dano. Não sabemos fazê-lo. Talvez a história humana seja a história da nossa respiração difícil, inconsciente, inconsequente, que torna o planeta mais e mais irrespirável. A tristeza atinge até os lemingues, que passam a saltar dos prédios, traindo o próprio DNA. Se Alberto Bresciani nos coloca junto dos animais não é apenas porque quer usar de metáforas, analogias, mas porque estamos juntos mesmo, com uma ilusão de separação. Porque somos animais com eles. Porque tanto em nós quanto nas girafas, nos bisões, nos moluscos há uma ordem de viver, ainda que ali na frente esteja o nosso predador, que quer viver também. Tanto o mundo natural quanto a civilização (cultura) que construímos são tomados pela violência. Saber por que trouxemos mais sofrimento do que o existente por si torna a vida humana indecifrável. Que tenhamos nos tornado nosso próprio predador é asfixiante:

Porco-espinho

Acantonado pela fera
na touceira seca,
pensa o porco-espinho

era então só isso, noite e dia,
um passo atrás do outro
um passo atrás do outro,

esperando o que viesse
à frente, fugindo
do que ficou para trás.


Fonte vital, alguns minutos sem oxigênio e acaba a vida. O poeta é aquele que dá valor ao invisível, ao que nutre os corpos emocionais. Quanto negamos (e negamos a nós) na nossa relação com o mundo? Quanto da nossa tristeza, depressão, sofrimento envenenam o ar? Se a sanidade de nossos pulmões dependesse da sanidade de nossas trocas afetivas, talvez a alegria fosse um antídoto; antídoto, por sinal, amplamente recomendado pelo filósofo Spinoza, pois a alegria aumentaria a nossa potência para a ação e o pensamento.

Na sobrecarga dos dias, entre poemas que dão conta de nossa claustrofobia, o poeta nos diz de uma pausa para respirar: voltar-se para dentro, para o lugar onde ainda respirávamos na água.


Submersos


Submersos, somos leves,
com cabelos de algas

Nenhum fruto se iguala
ao que nada

Sim, morder a maçã
limpa os dentes

Mas escute um pouco
o arrepio que sobe

do fluxo cadenciado
das brânquias

No fundo
sempre fomos felizes.


***
Fundamentos de ventilação e apneia
Alberto Bresciani
Poesia
ed. Patuá
2019