sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

A ORIGEM DA ÁGUA, DE ANA CRISTINA BRAGA MARTES

 



 

Por Adriane Garcia

 

Por estes dias, estive envolvida na leitura do romance A origem da água, de Ana Cristina Braga Martes. Considero que “envolvida” é uma palavra acertada, já que somente as obrigações diárias faziam com que eu me separasse do livro. Nele, a autora ficcionaliza a história da escritora Maura Lopes Cançado, em uma livre adaptação que contou com uma pesquisa não só da vida, como também da obra de Maura.

 

O ponto crucial é a loucura e a grande pergunta é de onde ela vem. Laura, a protagonista narradora, é desde a infância assombrada pela doença que nem ao menos tem nome. A mãe já recomendava: “Não precisa espalhar, contar isso, quem precisa saber, já está sabendo” e Laura convivia com o que era presença incontida e silêncio: “Era a minha doença, doença que não tinha nome”. Sem saber o que pronunciar a respeito de si, imersa na tensão do tabu da palavra “louca”, a menina conviverá com seu transtorno (alucinações, surtos psicóticos, esquizofrenia) conhecendo dele sua força, suportando seu mistério. Qual a origem da água, como impedi-la de ser água e agir como tal? O que poderia conter um rio caudaloso, um tsunami?

 

Assim como Maura, a personagem Laura irá se internar voluntariamente em um hospício, o Hospital Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio de Janeiro. Essa experiência que a personagem narra, assim como a narrou em Hospício é Deus a escritora Maura Lopes Cançado, coloca-nos dentro da instituição psiquiátrica. Nas instituições de internação psiquiátrica, longe de haver uma preocupação com a saúde mental dos internos, o que se vê é ainda mais silenciamento sobre a loucura. O louco é alguém que tem que ser contido, neutralizado, que deve deixar de sentir, a fim de se tornar menos pernicioso à “normalidade” ao seu redor. Todos os lugares de internação coletiva deveriam ser muito bem vigiados pelos organismos de Direitos Humanos, pois nesses lugares, por suas próprias características, há uma facilidade enorme em se destituir as pessoas de sua humanidade e praticar, inclusive, tortura. O hospício é cárcere e, muitas vezes, foi e é lugar de maus-tratos, como reforça um outro livro, Holocausto brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, que não retrata uma instituição psiquiátrica, mas um campo de concentração.

 

Ao contrário do que se pode pensar, não são somente as pessoas com diagnósticos indiscutíveis de transtornos mentais que são internadas nos hospícios; neles, todas aquelas e todos aqueles que perturbam a ordem pública, a ordem matrimonial, a ordem social e política, podem ter igual destino ao dos loucos, tornando-se, compreensivelmente, um deles. No hospício, os remédios neutralizantes e a violência de contenção tentam barrar a força da água. Nos detalhes do prédio, do refeitório, da forma de servir a comida, das roupas, do tratamento estéril de bons afetos, Laura pode depreender que seu lugar tanto fora quanto dentro daquela instituição é o lugar-nenhum, o sem-lugar. Porém, ela não está ali morta, inerte, incapaz de olhar e ver. Por isso escreve e nos noticia: “Cinza é a cor do hospício”.

 

Com uma linguagem fluida e, ao mesmo tempo, requintada, Ana Cristina Braga Martes retrata a loucura para além dos seus clichês, sua personagem nos leva à vida pulsante de uma mulher que lê, que escreve, que quer romper tabus impostos pelo machismo, que questiona o mundo e ousa ser sincera, como talvez somente os “loucos” possam ser, em uma sociedade que, como já nos foi alertado por Freud, só pode ser hipócrita, em resposta às altas exigências de uma moralidade que está muito além do que o indivíduo pode dar sem pagar com seu adoecimento.

Ao escolher como base de seu romance a história de Maura, uma mulher que se sabia escritora, pilotava aviões, foi para a cidade grande e conviveu com artistas, escritores, jornalistas e intelectuais, tendo sua vida marcada por internações, Ana Cristina Braga Martes encontra a personagem perfeita para se inspirar e nos mostrar que uma pessoa com transtornos mentais não pode ser reduzida apenas ao seu aspecto biológico. As pessoas com transtornos mentais são seres humanos que, fora das crises, têm consciência de si, sabem onde estão, sonham, amam, esperam. Laura, como Maura, encontrou na escrita uma maneira de não silenciar sobre o seu mistério e a sua condição. A origem da água, a de Laura, talvez esteja na fixação pelo pai como modelo e objeto. Já a origem de tal fixação não se encontra. O fascínio pelo abismo e o amor por este homem – procurado em todos os outros homens com os quais vai se relacionar afetivamente – ditará os caminhos e uma maneira egóica de se sentir o centro, de fazer apenas o que quer, de não suportar a contrariedade. Uma represa que estoura. A água escorre sem que Laura consiga dirigi-la, até que o mundo se torne todo água.

 

Ainda que impedidas de cultivar o solo ácido, tentamos simular indiferença às pedras, espinhos, pulgas e agulhas, em busca de uma outra natureza. Qual é mesmo o nome dessa nossa natureza?, ela pergunta. A minha é escrever, dona Rubia, escrever. Então a minha também é, ela responde.

Aqui dentro avisto mulheres loucas que amam sem saber amar. Pior: amam sem poder tocar. O amor pelo louco é o amor cercado, mudo, inviável. Só resta um caminho aos loucos que amam: desaprender. Aqui dentro há mulheres que amam, que pintam, recitam, atuam, fingem e escrevem.

É preciso aprender a escrever e a viver de modo conciso, com parcimônia nas interpretações. É o que eu digo a elas quando me mostram seus escritos. Parece que voltei à redação do jornal: evite pontos de interjeição e elimine as reticências. Falei isso tudo para o doutor A., mas ele não entendeu nada. Nessas horas, tenho certeza de que minha inteligência é superior à dele.” (p. 70)

 

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A origem da água

Ana Cristina Braga Martes

Romance

Confraria do Vento

2019

 

 

A FILHA PRIMITIVA, DE VANESSA PASSOS

 


 

Por Adriane Garcia

 

Na busca das nossas origens, a ciência, a filosofia, a arte e a religião fizeram perguntas. No mundo patriarcal, a visão androcêntrica determinou tanto as perguntas, quanto as respostas. Por que isso não teria acontecido também com a maternidade? Não a maternidade como fato biológico, mas como fato social. A construção social do conceito de mãe é crucial para a história do patriarcado. Na diferenciação biológica, a presunção da diferença social como natureza e a consequente divisão social do trabalho. O homem deduz, e principalmente deduz o que deduz porque lhe é vantajoso. Como nos ensina Gerda Lerner, em A criação do patriarcado (ed. Cultrix), “Se Deus ou a natureza criaram diferenças entre os sexos, que, em consequência, determinaram a divisão sexual do trabalho, ninguém pode ser culpado pela desigualdade sexual e pela dominação masculina”. No mundo patriarcal, a capacidade reprodutiva das mulheres é sua principal função. Se uma mulher que não tem filhos é desviante, uma mulher que, tendo filhos, contesta a maternidade, é uma blasfemadora. A narradora protagonista de A filha primitiva, de Vanessa Passos, blasfema.

 

Grávida aos vinte e dois anos, em uma relação frágil, cujo namorado não assume a paternidade, a protagonista narra sua experiência com a filha, um bebê que receberá os danos de uma maternidade indesejada. Ao mesmo tempo, a protagonista procura saber sobre seu passado, mais precisamente sobre o pai, de quem nem mesmo sabe o nome. Como matrioscas do abandono paterno, as três mulheres – a filha e a mãe da narradora, mais a narradora – seguem suas vidas marcadas pela violência de gênero, pelo registro inexistente de ancestralidade e, por consequência, pela falta de uma história que complete as lacunas do passado: “Só pode ser maldição. Outra que vai crescer sem o pai”. É nesse sentido que Vanessa Passos constrói uma narrativa que, ao mesmo tempo que busca as origens de uma personagem, estabelece a escrita literária como invenção para o pertencimento. É a linguagem que vai tentar fazer a compensação pela memória perdida.

 

O desejo de recuperar a história do seu passado vai muito próximo das últimas consequências. Desprovida de um “amor materno a priori”, a narradora está disposta a colocar a vida da “menina” em risco para chantagear a mãe, para que lhe conte a verdade. Vanessa Passos nos deixa diante daquelas perguntas sobre inatismo, sobre “características femininas inatas”. Em uma relação complicada, um trio dependente mutuamente, as três mulheres, avó, filha, neta, constituem três gerações em busca de algum tipo de reparação. A mãe da narradora, mulher negra, “adotada” por uma família branca quando criança para ser empregada doméstica, “quase da família” espera na filha os estudos que nunca pode cursar. A narradora, filha em busca de um pai espera que a filha – o bebê – possa ao menos ter um álbum de fotografias. O bebê espera amor, mas amor é uma herança e um aprendizado, é sempre uma outra pessoa que, de uma forma ou outra, nos dá ou ensina amor para que repassemos.

 

Comprometida em sua história de amor, a narradora ama e odeia sua mãe, a qual responsabiliza pela falta do pai e por abusos sofridos na infância, assim como lhe odeia os hábitos religiosos e a falibilidade de um deus que não serve para nada. Por vezes, a leitura nos leva a duvidar de seu desprezo pela filha, parecendo mais ser uma força que deseja alcançar do que realmente uma força que sente: “Pouca coisa sobra da gente depois da maternidade”. Há uma luta interna mostrada nas cenas que envolvem vínculo e amamentação: “Já era tempo de parar de mamar, mas a menina continuava agarrada ao peito. No fundo eu gostava”. No turbilhão que é a chegada de um bebê nessa família pobre e sem qualquer amparo dos homens – que fogem de suas responsabilidades – vemos uma jovem que precisa continuar estudando, precisa trabalhar e ganhar o pão de cada dia para as três: “Falta eu sinto mesmo é de não ter de pensar em ganhar dinheiro o tempo todo”. Um massacre que nos leva a pensar no conceito de “mãe suficientemente boa” de Winnicott. Quanto a sociedade e o Estado criam obstáculos para que uma mãe possa ser “suficientemente boa”? Quando os homens de poder resolvem representar mulheres que devem criar seus filhos sem qualquer amparo dizem ser a favor da “família”, de que família estão falando? Onde está o “pai suficientemente bom”? O mundo mudou muito desde o período Neolítico, a cultura permitiu um afastamento (até mais do que desejável) da natureza, mas para o homem que abandona o filho – uma verdadeira tradição – ainda se utiliza a desculpa de que os “homens saíam para caçar”. Não é a natureza que determina que uma mãe sozinha tenha que dar conta de criar o filho “quem pariu Mateus que o embale”, é o machismo, que relega à mulher esse papel (de gênero) fazendo ser muito “natural” que homens simplesmente se abstenham de qualquer responsabilidade quanto ao filho que também fizeram.

 

A filha primitiva nos leva ao microcosmo de uma mãe na atualidade, cujo dilema fica muito bem resumido pela escritora espanhola Esther Vivas, no livro Mamá desobediente, una mirada feminista a la maternidade: “O ideal materno oscila entre a mãe sacrificada, a serviço da família e das crianças, e a superwoman capaz de conseguir tudo conciliando trabalho e criação dos filhos.” Concilia-se e, por vezes, muito mal. Vanessa Passos, corajosamente nos lembra que não adianta idealizar a maternidade se a maternagem – a função de ajudar o bebê a vencer o desamparo e se tornar autônomo – não pode existir. Que a maternidade não está ilesa do contexto socioafetivo, pois os cuidados físicos com o filho podem existir sem necessariamente ser investidos de desejo. As mulheres precisam falar sobre a maternidade real, que inclusive pode ser boa, não a idealizada – desta os homens já falaram, é somente santa – mas sequer há esse lugar de escuta. A autora nos dá o relato de uma jovem mãe que reflete sobre o parto como um pesadelo, envolvendo a tão comum violência obstétrica e a exigência dos padrões de beleza: “pelo menos tu voltou pro teu corpo de antes”. A grávida que fica, mas não quer ficar, quer fugir: “Esperei mexer de novo pra dizer a ela que era melhor morrer do que viver nesse mundo.”

 

Vanessa passos, ao escrever A filha primitiva, utiliza uma linguagem direta, frases curtas, com uma certa dureza que junta tema e forma. É um livro que nos mostra como é fácil culpar a mãe, culpar mulheres em um mundo feito contra elas, mas também mostra o esforço para superar a incomunicabilidade. Talvez, entre a mãe e a filha, um abraço possa servir como a língua universal quando o idioma – diga-se materno – falha. Diante do envolvimento com bebês, o corpo libera ocitocina – o hormônio do amor. Pesquisas recentes constataram que o envolvimento carinhoso e real com a criança estimula a produção desse hormônio verificado também em pais adotivos, mães adotivas, independente de sexo, gênero ou a composição do casal – se há casal. Havendo bebês, é preciso maternidade e paternidade responsáveis. Deveria ser sempre uma “escolha livre” ser mãe ou não. As mulheres têm mais o que fazer. E Freud errou: anatomia não é, necessariamente, destino.

 

***

Já era tempo de parar de mamar, mas a menina continuava agarrada ao peito. No fundo eu gostava, porque era o único momento em que eu me sentia mãe de verdade. A menina sugando de dentro de mim a mãe que eu não era.

Pelo menos tu voltou pro teu corpo de antes, isso é bom. Tem gente que nunca volta. Parto normal ajuda.

Se fecho os olhos, ainda escuto os gritos das mulheres parindo no hospital. Tive de entrar sozinha, minha mãe ficou na recepção. A enfermeira me disse que o pai era pra ficar lá fora, procedimento dos hospitais públicos, a proibição de homens nos espaços juntos das outras grávidas. Respondi que a menina não tinha pai, com o intuito de comovê-la, mas ela me tratou como uma puta que dava pra qualquer um, por isso a menina não tinha pai e eu não devia nem saber de quem era a criança. As enfermeiras não têm pena da gente. Talvez porque nunca tenham parido na vida ou porque já tenham visto partos demais.

Abri os olhos, a menina aninhada no peito, sugando o bico, umas mordidas de vez em quando, os dentes nascendo, as estrias saltando na pele.

Tu vai sentir falta quando ela deixar de mamar? Falta eu sinto mesmo é de não ter de pensar em ganhar dinheiro o tempo todo, botar comida na mesa e encher o bucho primeiro pra ter leite pra menina.

Dizem que quanto mais a bebê mama mais se produz leite, sabia?

Minha mãe se contentava em falar sozinha. Há muito tempo eu já não dava importância pro que ela dizia. Eu não via a hora de voltar pra Guaiúba, aquela cidadezinha no meio do mato, pra dar aula de literatura. Podia ter escolhido dar aula em Fortaleza, mas queria ficar o mais distante das duas, da minha mãe e da menina, ir pra um lugar onde ninguém me conhecesse e eu pudesse ser aquilo que eu inventasse, feito personagem de mim mesma, sem criança, escrevendo sempre que quisesse e sabendo quem era o meu pai.”

 

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A filha primitiva

Vanessa Passos

Romance

2021

Edição Amazon Kindle

 

 

 

 

 

A teoria da felicidade, de Kátia Borges

 



 

Por Adriane Garcia

 

 

Gênero muitas vezes subestimado, a crônica bem escrita é capaz de nos alertar, nos encantar, nos emocionar. É o que acontece no livro A teoria da felicidade, de Kátia Borges, no qual a jornalista, poeta e prosadora consegue unir características dos textos dessas três atividades para compor crônicas tomadas de inteligência, capacidade de comunicação, sensibilidade e beleza.

 

Ao começar com “A centralidade da poesia e sua poderosa força”, em uma narrativa que fala do encantamento diante do novo e das possibilidades de aprendizado, Kátia Borges nos dá as pistas sobre aquilo que vai se constituir a sua teoria da felicidade. Mais de uma vez, o texto é povoado por avós, tios, primas e primos, amigas e amigos de infância, destacando questões de memória e ancestralidade na construção do sujeito. A isso, soma-se um olhar muito peculiar da narradora, por quase todo o conjunto: é a poesia que faz observar a aerodinâmica das aves, é o alumbramento diante da magia do mundo e o sentimento de empatia que faz com que a pessoa não possa prosseguir com a violência do apedrejamento de um pássaro. A grande recorrência é a da palavra infância, pois é nela que A teoria da felicidade se apoia. O tesouro para suportar os exames da realidade, destruidores de tantos sonhos e ilusões, são as fotografias de memória, tiradas por “Polaroides sentimentais”.

 

É de se notar, que a “playlist mnemônica” destacada em “Uma menina vinda de Marte”, que também poderia se chamar playlist afetiva (pois é desta memória que a autora nos fala), marca uma série de outras crônicas, mostrando o quanto o referencial da música compõe A teoria da felicidade, assim como referenciais do cinema e da literatura, constituintes de uma história pessoal no seu encontro/desencontro com o mundo. Poderíamos até dizer que Kátia Borges escreveu um livro de “crônicas de formação”, nas quais uma menina cresce e se educa, e cujo papel educacional mais importante é demonstrado na personagem da mãe, aquela que diante do inseto verde ensina para a menina “Sobre a fragilidade da esperança”, o respeito pela vida. Assume-se assim o inseto verde e sua simbologia, o cuidado que deve ser ensinado para tratar o mais frágil – a vida é frágil. Esse aprendizado é formador de caráter. A mãe educa para a vida. O inseto representa esperança, mas também sorte. O aprendizado ético continua em “Minha mãe possuía uma coragem que não se acha fácil”. Kátia Borges nos mostra que a infância, também lugar de crueldade, de forças destrutivas que ainda estão aprendendo a encontrar caminhos menos perigosos e fatais para sua realização, pode se encaminhar para o exercício criativo, a generosidade e o altruísmo, aula que a mãe ministrou de mãos dadas com a filha e com o olhar atento ao outro. A teoria da felicidade inclui solidariedade. Uma vez li que o contrário do amor não é o ódio, que o contrário do amor é o medo. A filha queria a coragem da mãe, porque coragem é um outro nome para amor.

 

No conjunto das quarenta e três crônicas, o tempo se apresenta quase em linearidade, não fosse a insistência da memória em atravessar portais e dimensões. Olha-se para trás, lá onde a teoria da felicidade deve se ancorar porque houve um aprendizado, uma capacidade. O pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott diria que houve a nossa bendita ilusão de onipotência, quando a fantasia precedeu toda realidade. Nas crônicas de Kátia Borges, parece sempre haver esse lugar maravilhoso de voltar, cujo encontro (reencontro) se torna possível nas palavras “veraneio” ou “mãe”, no que elas evocam, no prazer das férias, da família reunida, da saciedade, do tempo mítico e do prazer. Depois – já que falamos de tempo – o mundo se coloca para nossos embates, Kátia Borges escreve sobre a estranheza dos rostos de ontem, esse fenômeno afetivo de, nas fotografias de antes, não reconhecermos mais nem a nós nem aos outros, habitantes do presente.

 

Descobrimos que a Teoria da Felicidade foram conselhos de Albert Einstein escritos em bilhetes para um camareiro, no lugar de gorjetas. Alcançando a idade adulta, a narradora – que nos parece única – estará à procura de tal teoria (e prática), intuindo que a felicidade está nas coisas simples, nos pequenos gestos do cotidiano, no protesto contra a pressa capitalista: “Em câmera lenta, venceremos, se é que se há de”.

 

Em uma época na qual os apelos por fórmulas de felicidade abundam, assim como o número daqueles que publicam livros e fazem posts nas redes sociais garantindo ensiná-la, um título como A teoria da felicidade pode parecer, bem à primeira vista, uma promessa. Porém, caso a leitora e o leitor pensem que Kátia Borges possui essa receita, cairão em engano. Trata-se de literatura, não de charlatanismo. Há uma confissão humaníssima sobre a falta e a busca, sobre a transformação que os eventos vão operando em nós – como a morte de nosso tão amado cão; há um humor sem escândalos e sem excessos e que, por isso mesmo, nos surpreende com pitadas deliciosas de riso em meio à leitura:

Sou afeita a aconselhar os outros, confesso; é quase um esporte. Basta um amigo abrir a boca e fazer uma queixa, que elaboro em segundos o plano perfeito. Soluções para espinhela caída, nome no Serasa e amores que não deram certo? Temos.”

 

Entre soluções que quase nunca solucionam e ainda ter que lidar com o esquecimento – que é perder conscientemente um tanto do que somos – o jeito é criar um software de memória chamado livro, registrar alegrias, frustrações, imortalizar os inimigos, por exemplo. Escrever é admitir as falhas. À medida que o livro se encaminha para narrativas que privilegiam a idade adulta, os conflitos vão se agravando, palavras como “depressão” surgem; o meio literário e sua política e mercado comparecem; da adolescência em diante, a tristeza também pode passar a ser alimentada: “Afaguei a tristeza por tanto tempo, que ela se apegou a mim”. Trecho que me remeteu a outro cronista, Paulo Mendes Campos, em Para Maria da Graça: Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado.”

 

Kátia Borges evoca A arte de perder, de Elisabeth Bishop. Ambas sabem que “a arte de perder não é nenhum mistério”, talvez porque perder seja uma de nossas primeiras experiências. Para Freud, “A meta inicial e imediata do exame de realidade não é, portanto, encontrar na percepção real um objeto correspondente ao imaginado, mas sim reencontrá-lo, convencer-se de que ainda existe”. Neste sentido, todo encontro é reencontro e, por isso, tomado de saudade.

 

É de saudade também que Kátia Borges nos fala. Há uma nostalgia em A teoria da felicidade, o assombro de um tempo em que, parece, fomos felizes. Chama a atenção também as crônicas de amor aos cães e sobre o amor dos cães. Um destaque especial para estes seres que nos acompanham como verdadeiros amigos, “anjos”, diz a autora. São páginas especialmente emocionantes que falam sobre amizade, entrega, alegria, doença, morte.

 

A teoria da felicidade canta Belchior, “A felicidade é uma arma quente” (ou Happiness is a warm gun, dos Beatles). Nela cabe a admiração por outras mulheres, a vontade de crescer como se houvesse ali uma boa promessa, a diversão, a descoberta da sexualidade. Para descobri-la, vale consultar oráculos, recorrer ao budismo, às teorias que ensinam a fluir sem tanta resistência. A busca incessante por não buscar, com todo o seu paradoxo; desejar não desejar, ter a ambição máxima que é a ambição mínima, encontrar a origem. No princípio era o verbo? Kátia Borges parece nos dizer que no princípio era o silêncio. Por fim, escrever e principalmente publicar na contramão deste desejo de paz, já que é a exibição que rege o que se chama de sucesso: “Desde que entrou nesse labirinto, algumas vezes lhe faltam pernas para ir adiante”. Ser escritora é praticar uma atividade de luta, de condições desiguais entre pares nem tão pares assim, é ter um encontro com a “escritora amarga” e sair correndo de lá para não se tornar mais uma.

 

Não me peçam nada de importante, pois sou apenas uma poeta de província. Meu maior elogio foi o beijo que uma moça me deu no rosto. “É por sua poesia”, ela disse”.

 

Pois vai, Kátia, junto com esta leitura que registro do seu livro, de crônicas habitadas por lirismo, força e delicadeza, o meu beijo: é por sua poesia.

 

Viveremos dessa felicidade doce que nossos pais ensinam nos veraneios desde a infância, quando até os tios mais sisudos mostram as pernas, molham os pés, bebericam e perdem a compostura. É preciso parar um pouco, de vez em quando, feito o Sol no céu no dia mais longo do ano. Como no belo poema de Maiakovski, que virou pop pela mão dos Irmãos Campos, é imperativo criar versos luminosos em um mundo escuro.”

 

(Excerto da crônica O dia mais longo do ano, p. 111/112)

 

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A teoria da felicidade

Kátia Borges

Crônica

2020

Ed. Patuá