sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Lauren, de Irka Barrios





Por Adriane Garcia


Lauren, de Irka Barrios (ed. Caos e Letras) começa com uma fuga. A menina Lauren, de 13 anos, corre de alguma coisa que ainda não sabemos exatamente o que é, mas sua fuga desesperada já nos acena algo de Inquisição.

A história se passa em Novo Bosque, uma comunidade rural, fortemente religiosa, em que os habitantes se dividem em neopentecostais e católicos, vivendo de maneira pacífica; desde que, como diz Lauren, ninguém se destoe.

Destoar é o que faz Lauren. Já começando por sua forma física. Fora do padrão de beleza, a garota sofre bullying constante na escola. Seu apelido principal é Sapona. Os colegas até decoraram uma musiquinha para quando ela passa: “Laren bucho, Lauren sapona, Lauren baleia, saco de areia.” As tentativas da personagem de vivenciar a amizade são um fracasso.

Não tendo paz na escola, Lauren talvez pudesse encontrar no lar o acolhimento para passar a adolescência, mas ali também ela enfrenta o inferno. A família neopentescostal, desde os 6 anos de Lauren, de pai omisso e mãe fanática, colabora para que a protagonista se sinta absolutamente forasteira no mundo. Forasteira como Inês, a fantasma que, segundo a lenda de fundação da cidade, amasiou-se com um homem casado e assassinou seus anfitriões. Novo Bosque é, nas palavras do pastor, uma comunidade herdeira do pecado.

A menina cresce ouvindo que o demônio a irá tentar, cresce ouvindo sobre tentações às quais não poderá sucumbir e é neste clima de muita oração e nenhum diálogo, de misoginia aplicada, de obscurantismo e solidão que Lauren se encontra enquanto foge.

Obviamente que um livro que toca no assunto religião e religiosos não poderia deixar de mostrar a face da hipocrisia. Fazendo o trabalho que o Estado deveria fazer, as igrejas se aproximam dos mais necessitados e se aproveitam para exercer poder, político e íntimo. Não raro descambando para o assédio e a violência sexual. Pais que, tão preocupados em localizar o demônio não conseguiriam reconhecê-lo a um palmo do nariz (ou do espelho); aliás, não conseguem ver que a filha volta da escola machucada.

Alguns leitores poderão encontrar em Lauren uma história de terror sobrenatural. Outros poderão encontrar um retrato psicológico de uma personagem que, vivendo em um ambiente claustrofóbico, preconceituoso e inóspito para a vida – que requer liberdade para sua plenitude – manifesta uma imaginação dominada pelo medo, pela superstição, pelas formas simbólicas do mal, toda vez que se encontra em um momento de grande tensão. Pode bem ser o terror real que, cada vez mais, se alastra nas casas brasileiras e que passa a morar dentro das mentes, contribuindo para a tragédia nacional.

Sentado em frente à TV, o pai aguardava o chamado para o jantar. Trocava de canal com total desinteresse até que parou numa emissora de séries americanas. O comercial mostrava trabalhadores entediados que perseguiam um sonho difícil de realizar. A música de fundo, uma batida eletrônica estimulante, demonstrava que tudo daria certo, você alcançaria o objetivo. Mesmo que demorasse cinco anos ou mais, seu lugar no ranking dos vencedores estava garantido, bastava acreditar. Na mensagem final, o senhor Johny Wlaker, de fraque e cartola brancos, caminhava sobre um fundo preto até sua silhueta ser impressa na garrafa quadrada com o precioso líquido dourado.
Keep walking.
– Tá na mesa – a mãe poupou Lauren de chamar o pai. Vestia cores escuras: camisa marrom fechada no colarinho e saia preta até o joelho. Sentou-se sem questionar a nova disposição.
Serviram-se, os três, de cabeça baixa. O único ruído presente era o dos talheres riscando o vidro dos pratos ou tocando as bordas das panelas. A televisão da sala permanecia ligada, num volume em que as palavras são indecifráveis para o ouvido humano. Mostrava uma reportagem sobre o comportamento de um bando de macacos nada amistosos. Lauren ousou erguer o olhar para a tevê por um momento. Onde estão Adão e Eva, mamãe? Quis perguntar, não teve coragem. Não fosse a língua comprida da serpente, Adão e Eva estariam lá, no Paraíso, sem saber o que fizeram de errado. Os macacos e todos os animais não agem da mesma forma? Maldita cobra traiçoeira que avisou sobre o que é feio e constrangedor.” (p. 62/63)

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Lauren
Irka Barrios
Romance
Caos e Letras
2019